PURÍM
Capítulo 9
Purím – um sorteio
“Por isso, aqueles dias chamam pelo nome de ‘Purím’, devido ao ‘Pur’” (Meguilat Ester 9:26)
Os nomes das festas judaicas expressam sua essência e significado. Sendo assim, por que o nome desta festa tão especial – Purím – foi fixado em nome do pur, sorteio, feito por Haman? Afinal, o sorteio de Haman é um pequeno detalhe em toda a trama da história da Meguilá. Como um pormenor tão insignificante pode simbolizar a essência desta festa?
Mais ainda: o Iben Ezrá z”l explica que “pur” é uma palavra persa, por isso a Meguilá explica em hebraico: “pur, hu hagoral” – “pur, isto é, o sorteio”[1]. Por que a Meguilá já não escreveu diretamente em hebraico para não ser preciso explicar? E por que o nome da festa foi fixado em persa e não na língua e que foi dada a Torá, como as demais festas judaicas?
O Midrash Yalkut Shimoni[2] traz:
“Pur, hu hagoral (sorteio) – disse Rabí Chama bar Chanina: você é o goral (sorteio) de Israel”.
Ou seja, o próprio Haman é o sorteio do Povo de Israel. O que significa isso?
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Outros questionamentos
Para entender tudo isso, precisamos analisar uma passagem de nossos sábios[3]:
“Onde encontramos uma alusão a Haman na Torá? No versículo[4] ‘Hamin Haêts’ [quando D’us diz a Adam: “Por acaso comeste da árvore que te ordenei não comer?”]. Onde encontramos uma alusão a Ester na Torá? No versículo[5] ‘Vaanochi haster Astir’ [quando D’us diz ao Povo de Israel: “Naquele dia, encobrirei Minha face”]. Onde encontramos uma alusão a Mordechai na Torá? No versículo[6] ‘Mor Deror’ [quando D’us diz a Moshê: “Quanto a você, pegue as mais finas fragrâncias: mor deror (mirra destilada)…”]. A tradução de mor deror para o aramaico é: Mera-Dachya (o que soa como Mordechai)”.
De todos estes três versículos citados na passagem acima, aparentemente, o único que parece plausível é o que nossos sábios trazem com o nome de Ester. De fato, o versículo que diz que D’us ocultará Sua face de Israel explica muito bem a história da Meguilá: a época de Achashverosh foi uma era na qual D’us Se manteve oculto, e mesmo a salvação de Israel por Ester deu-se de forma “natural”. Além disso, nome de D’us não aparece sequer uma vez em toda a Meguilá. Já o versículo ligado a Haman e o versículo ligado a Mordechai parecem não ter nenhuma ligação com eles, fato este que devemos tentar compreender.
Há mais uma passagem de nossos sábios que exige nossa atenção: de acordo com o midrash[7], o primeiro dia de jejum decretado por Ester foi o primeiro dia de Pêssach. Naquele ano, ninguém comeu matsot nem bebeu os quatro copos de vinho em Pêssach. O midrash explica que Ester argumentou o seguinte: é melhor que anulem um Pêssach para depois poderem cumprir muitos Pessachim, ou seja: as mitsvot do dia não foram cumpridas devido ao perigo de vida. Mesmo assim, a objeção de Ester traz espanto: afinal, o decreto de Haman, promulgado no dia 13 de Nissan, era para quase um ano depois, no dia 13 de Adar. Assim, era possível esperar mais um ou dois dias para começar o jejum, de forma que não fosse preciso jejuar no Yom Tov e anular as mitsvot do dia.
Há também uma lei incompreensível em relação a Purím: Rava (no Tratado de Meguilá[8]) diz: “Um homem deve se embriagar em Purím até não saber diferenciar entre ‘maldito seja Haman’ e ‘bendito seja Mordechai’”. Qual seria a necessidade de não saber a diferença entre “maldito seja Haman” e “bendito seja Mordechai”? Isso fica ainda mais incompreensível ao nos depararmos com o que consta no Talmud Yerushalmi[9]: “É preciso pronunciar, em Purím, ‘maldito seja Haman’ e ‘bendito seja Mordechai’”. Tanto, que o Shulchan Aruch traz isto como lei[10]. Se é obrigatório pronunciar “maldito seja Haman” e “bendito seja Mordechai” e chegar a esta consciência, por que há uma lei contrária que vem inibir esta consciência?
O Arizal explica que o ato de beber em Purím é para “dar uma parte” para a Sitrá Achrá (“o outro lado”, o lado da impureza), assim como o bode expiatório de Yom Kipur. Este assunto também precisa ser esclarecido: seria correto fazer “um pouco de pecado” já que é impossível enfrentar a força da impureza?
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Voltando à raiz do problema
Para entender a resposta para todas estas perguntas, aprofundemo-nos do assunto que é a raiz de toda a história de Purím: o ataque de Amalek contra o Povo de Israel quando este saiu do Egito. Afinal, não foi à toa que nossos sábios instituíram que devemos cumprir a mitsvá de lembrar o que nos fez Amalek justamente antes de Purím. Esta história é uma introdução obrigatória para o entendimento da essência da festa de Purím.
O midrash Tanchuma[11] explica que o ataque de Amalek no deserto, foi um castigo Divino[12] pelo fato do povo de Israel ter dito: “Será que D’us está em nosso meio ou não?” Outro motivo para esta punição Divina, consta em alguns midrashim[13]: “Rafu yedehem min hamitsvot” – os judeus se “enfraqueceram” no cumprimento mitsvot. No Tratado de Sanhedrin[14] nossos sábios acrescentam que se enfraqueceram também no estudo da Torá. Ou seja, ocorreu um enfraquecimento geral no serviço a D’us. Cabe aqui o questionamento: Por que justamente Amalek foi escolhido por D’us como uma “resposta” a estes pecados? E ainda: todas as punições Divinas são “Midá Kenegued Midá” (ou seja “na mesma moeda” do pecado em questão[15]), como isto se aplica no caso citado?
Há mais midrashim referentes ao que fez Amalek que precisam ser compreendidos:
O Midrash Tanchuma[16] conta que os amalekitas cortavam as milot (a parte do corpo em que foi feita a circuncisão) dos judeus e jogavam-nas para cima, dizendo para D’us: “É isso que escolheste”. Este comportamento estranho com certeza precisa de uma explicação.
E mais: durante a batalha entre Amalek e os soldados de Israel, a Torá conta que Moshê ficou no topo do monte e, enquanto mantinha suas mãos para cima, Israel ganhava. Quando seus braços se cansavam e ele os abaixava, Amalek vencia. Nossos sábios perguntam (Tratado de Rosh Hashaná[17]) o seguinte:
“Acaso as mãos de Moshê são capazes de fazer alguém vencer a batalha ou perder? Mas vem ensinar: quando olhavam para cima e subjugavam seus corações para seu Pai Celestial, venciam. Caso contrário, perdiam”.
É compreensível que o povo, vendo as mãos de seu líder, Moshe Rabenu, erguidas aos céus, subjugavam seus corações para seu Pai Celestial, e consequentemente venciam na guerra, porém devemos procurar entender o porquê desta conduta ter sido efetuada somente na guerra contra Amalek, e não em demais combates?
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Resolução dos questionamentos
É conhecido o que nossos livros sagrados trazem que o valor numérico de Amalek é “safek”, ou seja, “incerteza”, “dúvida”. “Goral”, sorteio, que é o uso prático da incerteza, também tem o valor numérico[18] de Amalek. De fato, a maior ameaça para o serviço a D’us é a incerteza. Afinal, ninguém que teme a D’us irá transgredir uma proibição clara e total. Já quando surge um pouco de incerteza em seu coração – quanto à existência de D’us, ou quanto ao status haláchico do assunto ou mesmo quanto à gravidade da proibição – abre-se a oportunidade para pecar[19].
Tomemos como exemplo o fumo: as pessoas não têm certeza absoluta de que, em seu caso específico, o fumo levará à morte, e portanto acabam fumando. Caso tivessem cem por cento de certeza de que o fumo encurtará suas vidas, na certa parariam de fumar, mesmo que isso exigisse muito esforço de sua parte. Assim, basta uma “incerteza” no coração da pessoa para que ela seja levada por suas vontades de maneira irresponsável e insensata.
A força de Amalek é levantar a dúvida e usar sua força destrutiva para lutar contra o bem. É isso que fez Amalek quando o Povo de Israel saiu do Egito. Conforme nossos sábios contam (Tanchuma[20]):
“Amalek “esfriou” Israel, a exemplo de uma banheira cheia de água fervente na qual ninguém era capaz de entrar. Veio um homem infame e pulou dentro dela. Mesmo que tenha se queimado, esfriou a banheira aos olhos de todos. O mesmo ocorreu com o Povo de Israel. Quando este saiu do Egito, o mar vermelho abriu-se perante ele, os egípcios foram afogados e todos os povos ficaram aterrorizados. Quando Amalek veio lutar com o Povo de Israel, mesmo que tenha levado a pior, esfriou-o perante as demais nações do mundo”.
Ou seja: até o ataque de Amalek, todas as nações temiam o D’us de Israel e sabiam que, caso atacassem Seu povo, com certeza seriam vencidos. Amalek mudou a situação, inseminando dúvida nos corações dos outros povos: será que vencer Israel era de fato uma missão impossível? Sempre que a dúvida aparece, o temor a D’us se esvai e, desta forma, as nações receberam forças para atacar Israel. Exatamente como acontece com o fumo, como citado.
Isso explica o que dizem nossos sábios no Tratado de Kidushin[21]: “O mais digno dos açougueiros é sócio de Amalek”. Explica Rashí: “Ele se depara com alguns animais nos quais há incerteza se são terefot[22] e, por querer manter seu dinheiro, acaba vendendo essa carne”.
É por esta razão que Amalek é definido na Torá: “e eles não temeram a D’us” – mais do que outros povos. Já que Amalek usa a força da incerteza, nada o detém – nem mesmo o medo de D’us que os outros povos experimentaram ao ver os milagres feitos no Egito. Esta é a diferença pela qual a Torá decretou ser preciso exterminar completamente Amalek, diferentemente dos demais povos, por mais pecadores que fossem. Afinal, o “mal” tem seu lugar no mundo, pois D’us o criou para que os seres humanos o vencessem. Já um “mal” tão grande e sem limites que é impossível de ser vencido – uma vez que a incerteza não permite o temor a D’us – não serve para nada e, sendo assim, não tem direito de existência mesmo neste mundo.
Vamos analisar o momento da criação do povo de Amalek. No Tratado de Sanhedrin[23] consta:
“Timná era filha de reis… quis converter-se e veio para Avraham, Yitschak e Yaacov e não a aceitaram. Decidiu então ser concubina de Elifaz filho de Essav, dizendo: ‘É melhor eu ser escrava deste povo que uma senhora em outro povo’. Saiu dela Amalek que apertou Israel”.
Ou seja: Timná queria fazer algo bom – ligar-se à família de Avraham Avinu – e por isso casou-se com Elifaz. Na prática, porém, ela errou ao ligar-se à família de Essav, o que é um ato negativo e não positivo. Fazer o mal achando que não é ruim (ou até achando que seja bom) é a raiz da criação de Amalek, cuja essência é fazer o mal abolindo o discernimento de que aquilo é realmente ruim. Esta força se expressa na incerteza ou na falta de consciência da gravidade da coisa. No caso de Timná, esta força chegou ao extremo, quando ela não estava incerta quanto ao seu ato se era bom ou ruim; ela tinha certeza absoluta de que fizera uma grande mitsvá. Este erro de chamar o impuro de puro é o auge da impureza de Amalek.
A essência do segundo sócio na criação de Amalek – Elifaz – era fazer o mal sob a desculpa de estar fazendo o bem. Ele tentou derramar o sangue do tio, o patriarca Yaacov, para cumprir a mitsvá de “Honrar o pai” e, no final, contentou-se em roubar todo o seu dinheiro pela “grande mitsvá” de obedecer seu pai e ao mesmo tempo salvar seu tio, transformando Yaacov em pobre que é considerado “morto”. Na realidade, o que ele fez foi desobedecer o pai e ainda deixar Yaacov Avinu absolutamente sem meios, achando que com isto “cumpriu seu dever” em relação a todos os envolvidos.
E o “terceiro sócio”[24]? Como é que D’us concordou com a criação de Amalek? A Guemará[25] explica: “Porque D’us não queria que os patriarcas a tivessem afastado [a Timná]”. A criação de Amalek foi uma reação Divina aos patriarcas por não terem convertido Timná. Nossos patriarcas, por quererem fazer o bem e não ter contato com uma descendência aparentemente imprópria, acabaram fazendo algo errado aos olhos de D’us. A reação Divina foi criar Amalek, que faz o mal achando que é decente.
À luz de tudo o que foi explicado, é possível entender por que Amalek veio guerrear com Israel como reação ao que disseram: “Será que D’us está em nosso meio ou não?”. Ou seja: no momento em que surgiu a incerteza em seus corações sobre a existência e a providência de D’us, já estavam “contaminados” com a kelipá[26] de Amalek, que é a “força da incerteza”. O local em que estavam, Refidím, denota frouxidão (rafê = frouxo, fraco), pois enfraqueceram na observância e no estudo da Torá. A sensação de frouxidão vem quando não se dá importância suficiente ao assunto em questão, sendo paralela à incerteza. Incerteza é a falta de consciência no pensamento, enquanto frouxidão é a falta de consciência nas emoções[27]. É como se estivessem chamando Amalek para dominar o Povo Santo.
É por isso que a vitória sobre Amalek se dava quando Moshê levantava seus braços. Os judeus olhavam para cima e enraizavam dentro de si a consciência de que só D’us iria ajudá-los (diametralmente oposta à incerteza de “Será que D’us está dentro de nós?”) e automaticamente subjugavam seus corações aos seu Pai Celestial (o oposto à frouxidão que sentiram em relação às mitsvot).
Segundo este raciocínio, é possível tentar entender o comportamento estranho dos amalekitas, que cortavam as milot dos judeus e as jogavam para cima, dizendo: “É isso que escolheste”. Já que a força de Amalek é a incerteza, tentando mostrar que o bem é ruim e que o mal é bom, pegavam a parte mais sagrada do Povo de Israel e a jogavam para cima, querendo dizer que D’us escolhera algo repugnante e desprezível. Como Amalek não era capaz de apreender a santidade que existe no Berit Milá, tentava demonstrar como o bem era ruim e instilou o veneno desta incerteza nos corações de Israel.
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Chegando a Purím
Agora que analisamos as raízes de Purím, passemos à história propriamente dita.
Nossos sábios apontam três erros principais pelos quais ocorreu toda a história de Purím:
1) Os judeus se ajoelharam para a estátua que Nevuchadnetsar mandou erguer na Babilônia (conforme a linha de Rabí Shimon Bar Yochai no Tratado de Meguilá[28]).
2) Os judeus tiveram proveito do banquete do perverso Achashverosh (conforme a linha dos alunos de Rabí Shimon Bar Yochai[29]. Em alguns midrashim consta que ambos têm razão, e ambos os pecados levaram a todo o ocorrido).
3) Os judeus “adormeceram em relação às mitsvot” (Tratado de Meguilá[30]).
Estes três erros têm um ponto em comum: a força da incerteza. Explicando:
Ao se ajoelharem para a estátua, eles não tiveram intenção de praticar idolatria; para que não fossem mortos, decidiram sozinhos que era permitido ajoelhar-se por fingimento. Não sentiram a gravidade da proibição.
Ao terem proveito da refeição de Achashverosh, os judeus não acharam que estavam fazendo algo errado. Nossos sábios aprendem no Tratado de Meguilá que os judeus receberam comida casher e a refeição foi conforme a Torá, ou seja: mais comida que bebida. Assim, os judeus não viram nenhuma proibição absoluta aparente e permitiram a si mesmos tirar proveito da refeição daquele perverso para que houvesse paz, apesar das advertências de Mordechai[31].
“Adormeceram em relação às mitsvot” – trata-se da frouxidão, da falta de consciência do sentimento, que é paralela à incerteza intelectual, conforme já vimos. Trata-se do “enfraquecimento em relação à Torá” que os judeus tiveram em Refidim, no deserto, antes do primeiro ataque de Amalek.
De fato, o teste da geração de Mordechai e Ester era a incerteza em relação ao que era verdade e o que era de fato bom. Estávamos no fim da era da profecia e o início do terrível ocultamento Divino, conforme vimos: “Onde encontramos Ester na Torá? No versículo[32] ‘Vaanochi haster Astir’ [quando D’us diz ao Povo de Israel: “Naquele dia, encobrirei Minha face”]”. A falta de clareza da verdade e das profecias fez com que Achashverosh errasse nas contas e chegasse à conclusão de que os setenta anos de exílio decretados por D’us já haviam passado. Parecia que as profecias não se haviam concretizado e que o Povo de Israel permaneceria no exílio para sempre. Toda a verdade da Torá estava em jogo. Justamente nestes dias, quando a incerteza dominava e o Povo de Israel falhou nisso, ergueu-se Haman, descendente de Agag, rei de Amalek, e desejou exterminar todo o nosso povo.
Para tanto, Haman lançou um sorteio, o “pur”, que não passa de uma “incerteza”. Haman deixou que a incerteza escolhesse quando se daria o extermínio, de forma que a dúvida dominasse o Povo de Israel. Quão profundas são as palavras de Rabí Chama bar Chanina que lembramos acima (Yalkut Shimoni): “Você [Haman] é o sorteio de Israel” – Haman é a própria incerteza que deseja apoderar-se dos filhos de D’us.
Tudo o que Haman desejava era dissimular a verdade, fazer com que o bem – parecesse ruim, conforme dizem nossos sábios[33]: “Disse Rava: ninguém sabe falar tão mal como Haman”. Haman convenceu o rei que os judeus (que na verdade são o símbolo do bem na criação) não passam do pior povo que existe na terra, tanto que não valeria a pena o rei mantê-los vivos. Assim fez também o Amalekita mais recente, Hitler, que seu nome seja apagado. Ele criou uma teoria “científica” sobre a natureza má dos judeus, a ponto de decretar seu extermínio completo.
Agora podemos entender o que nossos sábios quiseram dizer com isso: “Onde encontramos Haman na Torá? No versículo[34] ‘Hamin Haêts’ [quando D’us diz a Adão: “Por acaso comeste da árvore que te ordenei não comer?”]. Haman era uma espécie de árvore do conhecimento. Conforme explicam os mekubalim (Cabalistas), a árvore do conhecimento misturou o bem e o mal de forma que não fosse mais claro o que é realmente bom e o que é realmente ruim. Esta é a força de Haman, descendente de Amalek.
De fato, uma vez que o Povo de Israel falhou no teste da incerteza, Haman estava tomando vantagem e tinha o poder de exterminar todo o povo, sendo que o ocultamento Divino chegou ao auge naquele momento[35].
Como reação à notícia do terrível decreto, a Meguilá conta que a cidade de Shushan (seus judeus, de acordo com Rashí) ficou “perplexa”. Não só triste, mas perplexa. Perplexidade significa não saber o que fazer, estar cheio de dúvidas e incertezas[36].
Agora, justamente devido ao terrível ocultamento Divino, os judeus viam-se diante de um grande teste: reconhecer a verdade como um todo ou render-se à mentira dominante. Reconhecer que tudo o que estava ocorrendo era a reação Divina aos seus erros ou acreditar que tudo era simplesmente o caminho natural das coisas, um acaso. De fato, nossos sábios dizem[37] que no primeiro momento eles falharam, conforme está escrito:
“Israel disse… vejam o que me fez o descendente da tribo de Yehudá (o Rei David) e o que me fez o descendente da tribo de Binyamin (Mordechai). O que me fez o descendente de Yehudá? David não matou Shim’i ben Guerá (que o amaldiçoara gravemente) e seu descendente foi Mordechai (da tribo de Binyamin) o qual Haman invejou …”
Ou seja: o Povo de Israel, em primeira instância, culpou Mordechai por toda aquela situação, pois Mordechai não se ajoelhara a Haman e foi isso que acendeu a cólera daquele tirano. Conforme explica melhor o midrash[38]:
“Os judeus disseram a Mordechai: ‘Saiba que você nos está fazendo cair perante a espada deste perverso’”.
Assim, por um momento, eles falharam em pensar que o bom (Mordechai) era mau e não deixaram de criticar nem mesmo David Hamelech, uma vez que estavam atingidos pela impureza da incerteza.
Agora, o teste era de que maneira eles agiriam para anular o decreto, baseados na forma como encaravam a situação: acontecimentos naturais ou um decreto Divino? Nossos sábios dizem[39] que existia o risco do povo dizer “Temos uma irmã na casa do rei” e não rezarem ou retornarem para D’us – confiando na diplomacia de Ester.
No entanto, com a graça de D’us, Mordechai e Ester instruíram o povo corretamente e o povo passou pelo teste, compreendendo que seus erros haviam levado a tudo aquilo, sem se renderem à incerteza de que talvez, somente com diplomacia, tudo se resolvesse. Todos jejuaram e oraram, aceitando sobre si o jugo da Torá e das mitsvot. Desta maneira, consertaram os três erros que fizeram: ajoelhar-se para a estátua, aproveitar do banquete de Achashverosh e adormecer em relação às mitsvot. Todos estes três erros foram causados pela força da incerteza[40].
Seguindo esta linha de pensamento, é possível entender por que os judeus jejuaram imediatamente, embora fosse o primeiro dia de Pêssach, sem esperar alguns dias. Uma vez que o principal risco era pensarem que tudo aquilo não passava de algo natural e que se resolveria facilmente, esperar mais um tempo iria fortalecer esta posição errônea. Havia forte necessidade de demonstrar que chegaram à consciência de que D’us estava decepcionado com eles e que era preciso corrigir seus atos o mais rápido possível.
Agora também é possível responder a uma pergunta muito séria: a Meguilá[41] conta que, depois que Mordechai enviou as cartas onde o rei concedia aos judeus de cada cidade que se reunissem e se dispusessem a defender a sua vida, “em toda província e em toda cidade aonde chegava a palavra do rei e a sua ordem, havia entre os judeus alegria e regozijo, banquetes e festas”. Por que os judeus ficaram tão felizes que o rei lhes havia permitido prepararem-se para a guerra? Afinal, ainda estava vigente o terrível decreto segundo o qual todos os súditos e soldados do rei tinham o dever de aniquilar os judeus, e o perigo continuava lá.
Qual a origem desta alegria? A explicação é que, uma vez que o erro do Povo de Israel foi render-se à incerteza, agora precisava aderir com todas as forças à virtude da certeza, à confiança que D’us com certeza iria salvá-lo. Trata-se da mesma coisa que ocorreu na primeira guerra com Amalek: quando Moshê levantava seus braços, o Povo de Israel tinha que fortalecer sua confiança de que D’us com certeza lhe traria sucesso. Esta é a chave para lutar com Amalek, cuja essência é esfriar a banheira fervente e instilar a incerteza nos corações de todos em relação ao poder absoluto de D’us e à impossibilidade de vencer Israel. Assim, basta os judeus terem recebido a permissão de fazer um empenho qualquer para verem naquilo uma garantia de que D’us lutaria por eles, a tal ponto que ficaram tão felizes como se tivessem vencido. Esta nova situação espiritual do Povo de Israel tinha a força de vencer o esfriamento da banheira. Enquanto Amalek conseguiu abolir o medo das nações ao atacar Israel no deserto, o Povo de Israel conseguiu, agora, com a certeza de que venceria, fazer com que “muitos dos povos da terra se fizeram judeus, porque o temor dos judeus tinha caído sobre eles”[42].
Agora podemos entender o que nossos sábios disseram em Chulin: “Onde encontramos Mordechai na Torá? No versículo[43] ‘Mor Deror’ [quando D’us diz a Moshê: “Quanto a você, pegue as mais finas fragrâncias: mor deror (mirra destilada)…”]. A tradução de mor deror para o aramaico é: Mera Dachya”.
O Midrash Pirkê Derabi Eliêzer[44] explica melhor: “Seu nome era Mordechai porque sua prece era aceita por D’us como o aroma do mor deror”. Sua prece era comparada a um perfume porque era agradável; não uma prece de impotência, desespero e tristeza, mas uma expressão da consciência de que D’us é a fonte de tudo e confiança em Sua salvação. Vemos a plena confiança de Mordechai na salvação de D’us quando disse a Ester: “Se você se mantiver calada neste momento [e não for falar com o rei], a salvação virá de outro lugar…” Assim, a prece de Mordechai tinha o mesmo efeito que a elevação dos braços de Moshê: plena confiança que vence a incerteza de Amalek. Mordechai chama-se assim em nome de sua prece, pois é ela que o define: um homem cheio de confiança, que vive com toda a sua essência a fé em D’us. Por isso, ele foi o único de todos os sábios de Israel que não se ajoelhou a Haman. Seu grau de confiança em D’us era tal que Mordechai não precisava de nenhum tipo de empenho, nem mesmo agir de forma que ficasse em paz com os inimigos.
Com a força da teshuvá (retorno) do Povo de Israel, D’us derrotou a força da incerteza no mundo. Tudo o que parecia erroneamente bom foi revelado como ruim, e tudo o que se poderia pensar que era ruim foi revelado como bom. Esta é a explicação profunda do conceito “Venahafoch hu” – tudo virou. Mordechai foi anunciado pelas ruas como “o homem que o Rei (D’us) deseja seu bem” e Haman foi chamado por Ester de “este homem mau”.
E as coisas foram se sucedendo: Haman achava que o mês de Adar fosse um mês ruim para Israel, pois Moshê faleceu nele, mas errou. Adar demonstrou ser um mês bom para Israel, pois este é também o mês do nascimento de Moshê (conforme explicado na beraita de Meguilá 13b). A tora de madeira que Haman achou que estava preparando para Mordechai era, na verdade, sua própria forca[45]. E até mesmo sobre o primeiro decreto do rei diz o midrash[46]: “‘Tais cartas continham a ordem do decreto para que se proclamasse a lei em cada província, de forma clara a todos os povos, para que se preparassem para esse dia.’ – disse Rabí Levi: a profecia das nações do mundo é vaga, de forma que não sabiam se iriam ser mortos ou matar”. Ou seja, a nuvem da incerteza dissipou-se e ficou claro que Amalek e todos os inimigos de Israel eram aqueles que mereciam o extermínio.
Depois de tudo isso, é muito compreensível por que os dias de Purím foram chamados em nome do “pur”, sorteio. Toda a essência desta festa é o enfrentamento da força da incerteza e o sorteio é o símbolo desta força.
Ainda nos resta entender por que a Meguilá usa justamente a linguagem de “pur”, em persa, em vez da palavra hebraica “goral”, usando-a também para o nome da festa – Purím?
A Torá diz para usar o tefilin como “totafot” na testa e a guemará em Sanhedrin explica que totafot é uma junção de duas palavras: “tot”, que em dialeto cáspio é “dois”, e “fot”, que em africano também é “dois”. O total é quatro, o número de caixas com pergaminhos dentro do Tefilin. O Sheláh Hacadosh[47] explica esta guemará da seguinte forma: “Sequer pense que a Torá usou estas línguas que não são lashon hacodesh (a língua santa). A explicação é a seguinte: quando D’us criou Seu mundo, só existia uma língua: lashon hacodesh. Quando D’us misturou as línguas na geração da Torre de Bavel, entraram algumas palavras da língua sagrada nas demais línguas. Estas duas palavras (tot e fot) são em lashon hacodesh, mas foram misturadas no dialeto cáspio ou africano”. O Malbim explica ainda mais: a partir da geração da Torre de Bavel, muitas palavras da lashon hacodesh permaneceram misturadas nas outras línguas, ao passo que muitas palavras de lashon hacodesh foram sendo esquecidas[48]. Aqui também: “Pur” é em lashon hacodesh, mas esta palavra foi esquecida e sobrou somente na língua persa. Por isso a Meguilá deu-se ao trabalho de explicar: “‘pur’, isto é, o ‘goral’” (sorteio)[49].
Sendo que o sorteio simboliza a força da incerteza que Israel teve que enfrentar, é possível entender muito bem por que o versículo usa justamente a palavra “pur” e não “goral”. A falta de clareza é muito melhor expressa pela palavra “pur”, uma palavra que foi esquecida e portanto há incerteza e falta de clareza quanto ao seu significado e origem, a tal ponto que a própria Meguilá precisa explicá-la. Esta é a melhor palavra para expressar a essência desta festa: a luta pelo conhecimento claro e certo.
Depois de toda esta explicação, é possível tentar entender por que nossos sábios disseram que “o homem deve se embriagar em Purím até não saber a diferença entre ‘maldito seja Haman’ e ‘bendito seja Mordechai’”, e por que o Arizal diz que esta é uma forma de apaziguar a força da impureza, que inveja o nível deste dia especial. Damos a ela uma partezinha de forma que ela não tente nos dominar neste dia.
Conforme vimos, a essência do dia de Purím é vencer a força da incerteza, saber esclarecer e revelar que o bem é bom e o mal é mau. Esta é justamente a lei trazida pelo Yerushalmi, segundo a qual temos que pronunciar neste dia “maldito seja Haman” e “bendito seja Mordechai”: temos que anunciar quem é bom e merece bênção e quem é mau e merece o contrário. No entanto, o lado da impureza inveja muito este dia e tenta com todas as forças fazer com que as pessoas pensem, erroneamente, que o bem é ruim e o mal é bom. De fato, é fácil ver na prática a dificuldade das pessoas de festejarem Purím de maneira adequada. Passam o dia alegrando-se levianamente em vez de servir a D’us com alegria por Sua salvação e por Seu amor pelo Povo de Israel, e ainda acham que estão fazendo uma grande mitsvá. Por isso, nossos sábios encontraram uma solução que não implique sequer num “pequeno pecado”: cada um deve fazer com que ele mesmo fique confuso (por intermédio do vinho e do sono) até o ponto de não saber a diferença entre “maldito seja Haman” e “bendito seja Mordechai”, ou seja: até o ponto que, por um pequeno momento, não esteja claro o que é bom e o que é ruim, de forma que, quando a bebedeira se dissipe, ele recupere a clareza de pensamento e a consciência do que é bom e o que é ruim. Nossos sábios idealizaram a solução de nos “enganarmos” de forma externa e não essencial, de forma que nossa compreensão verdadeira continue intacta. Desta forma é possível neutralizar a incitação do lado da impureza sem causar prejuízo espiritual ao ser humano.
Nestes dias devemos nos fortificar a partir da santidade de Purím e armazenar a energia que emana desta festa tão especial. Afinal, mesmo hoje, enquanto Amalek existir, a força da incerteza continua tentando nos fazer desviar do caminho, muito mais em nossos dias, que precedem a vinda de Mashiach. Uma vez que a casca de Amalek está perto do fim, ela aumenta com mais força e mesmo os judeus tementes a D’us podem dizer que o bem é ruim e a verdade fica oculta. Conforme diz o Shem Mishmuel (parashat Bechucotai):
“… Antes de a virtude da verdade se revelar, a virtude da mentira aumenta, conforme escrito no Zohar: a hora mais escura da noite é o momento antes do amanhecer. Por isso, antes da Outorga da Torá veio Amalek, e antes de Mashiach chegar a mentira também aumentará no mundo”[50].
1
[1] Ao que tudo indica, esta parece também ser a explicação de Rashí sobre o mesmo versículo.
[2] Ester, remez 854
[3] Tratado de Chulin 139b
[4] Bereshit 3:11
[5] Devarim 31:18
[6] Shemot 30:23
[7] Ester Rabá 8:7
[8] 7b
[9] Meguilá 4:7
[10] Orach Chayim 690:16
[11] Parashat Yitrô 4
[12] Embora o povo de Amalek não sabia do pecado do povo judeu, e tão pouco tinha a intenção de puni-los por pecados, O Todo-Poderoso fez com que “sentissem” vontade de combater os judeus neste momento, por motivos pessoais diversos. Deve-se frisar, que D’us não tirou o livre arbítrio do povo Amalek, ou seja Amalek poderia ter evitado de ser o “mensageiro” (involuntário) da punição Divina, motivo este pelo qual o povo de Amalek merece ele mesmo punição Divina pelo próprio fato de terem atacado os Judeus. O mesmo se às perseguições diversas aos judeus durante todas as gerações, sendo que os perseguidores (Amalek e outros povos) “prestarão contas” na época de Mashiach.
[13] como Tana Debe Eliyáhu Raba 23
[14] 106a
[15] Vide explicação deste conceito no primeiro volume deste livro, capitulo 29.
[16] Ki Tetsê 10
[17] 29a
[18] com adição de 1, o que ainda é considerado o mesmo valor numérico (em hebraico isto se chama: Im Hacolel).
[19] O Ramchal escreve no Ets Hachayim: “O conhecimento da verdade fortalece a alma e afasta o mal instinto de forma certeira. Não há nada que enfraquece mais a alma perante o instinto do que a falta de conhecimento. Se as pessoas tivessem um vasto conhecimento que ficasse sobre seus corações, nunca pecariam”. Nas palavras do Ramchal há duas espécies de conhecimento: “conhecimento vasto”, ou seja: intelectual, e um conhecimento que fica sobre o coração, ou seja: emocional. Mais para frente ampliaremos mais este assunto.
[20] Ki Tetsê 10
[21] 82a
[22] Terefá é todo animal impróprio para o consumo por ter algum problema de saúde do qual poderia ter morrido não fosse o abate. Muitas vezes se descobre o problema após o abate.
[23] 99b
[24] “terceiro sócio” é uma expressão de nossos sábios (Tratado de Kidushin 30b) em relação a D’us, que é o principal responsável pelo nascimento de uma criança, junto com os outros dois sócios: o pai e a mãe.
[25] na continuação de San’hedrin.
[26] Kelipá (literalmente: “casca”) é um conceito kabalístico que implica na existência de uma força maléfica determinada.
[27] A falha nas emoções (“frouxidão”) é um resultado da falha intelectual.
[28] 12b
[29] Ibd.
[30] 13b
[31] Vide Ester Raba 7:13
[32] Devarim 31:18
[33] Tratado de Meguilá 13b
[34] Bereshit 3:11
[35] Minha filha Shoshana perguntou-me: sabemos que todas as vezes que está escrito “o Rei” na Meguilá – sem o nome Achashverosh – é uma referência (oculta) a D’us. Sendo assim, como se explica o versículo “E o Rei e Haman sentaram-se para beber”? Ela mesma esclareceu mais a pergunta: entendo que “beber” não precisa ser ao pé da letra, pode querer dizer “alegrar-se”. Mas o que D’us tinha para se alegrar juntamente com Haman?
A meu parecer, a resposta é que este versículo vem expressar o nível de ocultamento Divino naquela época: o amor de D’us por Seu povo estava tão oculto que até parecia que Ele não estava do nosso lado.
[36] É assim que o comentarista Radak explica a palavra “navochu” em Yoel 1:18.
[37] Tratado de Meguilá 12a
[38] Agadat Ester 3:2
[39] Tratado de Meguilá 15b
[40] É no Talmud procurou-se uma prova que a Meguilat Ester foi escrita com Inspiração Divina, até que encontrou-se a prova. Ou seja: a própria essência da Meguilá é o processo de ir vencendo a força da incerteza, até chegar à verdade. Mordechai também era querido pela “maioria” dos sábios judeus, mas não todos, pois na época duvidavam de sua integridade e de seu método, até que mais tarde ficou conhecido como “Mordechai Hatsadik” – o justo.
[41] 8:17
[42] Ester 8:17
[43] Shemot 30:23
[44] Cap. 49
[45] “E Haman tinha entrado no pátio exterior da casa do rei para dizer ao rei que se enforcasse a Mordechai na forca que ele, Haman, lhe tinha preparado” (Ester 6:4). Nossos sábios dizem: “Lhe tinha preparado – a si mesmo”. No Yalkut Shimoni, Ester 1054, consta: “O cedro está pronto para ti desde os seis dias da Criação”.
[46] Ester Raba 7:24
[47] na parte Torá Shebeal Pê 15
[48] Confira o Tratado de Rosh Hashaná 26b, que conta uma série de palavras em hebraico que nossos sábios não sabiam o que significavam até ouvi-las em outras línguas.
[49] Agora também é possível entender por que Rashí não diz que se trata de uma palavra persa. Afinal, em sua origem, ela não era persa.
[50] É verdade que o Shem Mishmuel não explica por que justamente Amalek é o símbolo da falta de verdade, mas depois de tudo o que explicamos é possível entender.