Capítulo 1
A Essência do Shofar
“Ele será um dia de soar (o shofar) para vocês”
(Bamidbar 29:1)
Na Torá escrita não há nenhuma referência a Rosh Hashaná como sendo o Dia do Julgamento ou o início do ano. Na Torá, esta festa é chamada de “Yom Teruá” – o dia de soar o shofar. Nossos sábios, ao estabelecerem as orações, também trataram esta festa diferentemente das demais. Enquanto Pêssach é chamado de “Época de nossa liberdade” e Shavuot é chamado de “Época da outorga de nossa Torá”, Rosh Hashaná é chamado em nome da mitsvá do dia: “Dia de soar (o shofar), um feriado sagrado”.
Por que Rosh Hashaná não recebe o nome de sua essência, que é o Dia do Julgamento, mas em vez disso recebe o nome da mitsvá do dia? Os termos utilizados pela Torá e pelos Sábios dão a impressão de que é como se o shofar representa a essência deste dia. Se assim de fato for, o que significa o shofar (a ponto de ser a essência) e por que o dia todo é considerado o “dia do shofar”?
Encontramos alguns ditos de nossos sábios sobre o shofar que talvez possam nos ajudar a entender sua essência e seu papel. No entanto, muitos deles são difíceis de compreender e exigem aprofundamento:
1) No tratado de Rosh Hashaná 16a consta que o shofar “confunde o Satan”. Os Rishonim (Sábios da época da Idade Média) oferecem três explicações para isso:
Rashí explica que, como o povo de Israel toca um número de vezes além do que é obrigatório, demonstra seu amor pela mitsvá. Quando o Satan vê o amor pela mitsvá, não tem mais o que objetar.
Os Tossafot trazem uma explicação em nome do Aruch baseado no Yerushalmi: o Satan pensa que se trata do shofar de Mashiach e teme que chegou a hora de ser anulado. Assim, ele acaba se confundindo e não acusa Israel.
O Rashbá e o Ran explicam que o Satan, neste caso, significa o yêtser hará – o instinto do mal – o qual vencemos em Rosh Hashaná por intermédio das mitsvot. Com o toque do shofar, as pessoas despertam para fazer teshuvá e vencem seus instintos.
À primeira vista, nenhuma das três explicações é plenamente compreensível: a de Rashí é difícil de entender pois sabemos que “uma mitsvá não apaga um pecado”. Só porque uma pessoa ama as mitsvot, não significa que ela não será castigada pelos pecados que cometeu.
Sobre o que o Aruch traz em nome do Yerushalmi, a pergunta é famosa: por acaso o Satan não sabe que o Povo de Israel toca shofar todo ano e não se trata do shofar de Mashiach?
Sobre a explicação do Rashbá e do Ran: se o assunto fosse de fato vencer o mal instinto, por que nossos sábios se expressaram de maneira não muito clara: “para confundir o Satan”? Deveria estar escrito: “para inibir o yêtser hará”.
2) Outro dito de nossos sábios que necessita nossa atenção, consta no tratado de Rosh Hashaná, onde está escrito o seguinte:
“Disse Rabí Abehú: Por que tocamos um shofar de carneiro? Disse D’us: ‘Toquem perante Mim um shofar de carneiro para que Eu lembre por vocês a akedá (atação) de Yitschak filho de Avraham. Considero como se vocês mesmos tivessem se atado para serem oferecidos a Mim’”.
Por que um ato tão fácil como o toque do shofar é considerado como se tivéssemos nos atado como oferendas a D’us, um ato de dedicação total do corpo e da alma?
3) Na mesma página da guemará há mais um dito de nossos sábios, muito fundamental e que exige aprofundamento:
“Digam perante Mim, em Rosh Hashaná: Malchuyot, Zichronot e Shofarot. Malchuyot – para que vocês Me proclamem Rei sobre vocês. Zichronot – para que sua lembrança suba para Mim para o bem. Com o quê? Com o shofar”.
O Rashbá explica que a pergunta “Com o que” refere-se tanto à lembrança quanto à coroação de D’us. Ou seja, há duas perguntas: com o que coroaremos a D’us e com o que Ele lembrará de nós para o bem? A resposta às duas perguntas é: por meio do shofar.
De que maneira coroamos D’us por intermédio do shofar? E por que o shofar faz D’us lembrar de nós para o bem? Mesmo que o shofar confunda o Satan de forma que este não nos possa acusar, no que ele é útil em relação à memória de D’us? Afinal, o esquecimento é uma fraqueza humana, enquanto que o Criador sempre lembra de tudo, como dizem nossos Sábios: “Não existe esquecimento perante o Trono Divino”.
4) Na continuação da guemará está escrito:
“Disse Rabí Yitschak: por que se toca o shofar (tekiá) em Rosh Hashaná? Por que se toca? Porque D’us disse “Toquem”! Então, por que se toca o shofar na forma de staccato (teruá)? Porque D’us disse: “lembrança da teruá”! Então por que se toca tekiá e teruá sentados e tekiá de pé? Para confundir o Satan”.
Se analisarmos esta guemará, veremos que este trecho vem logo depois de uma série de perguntas sobre motivos de algumas mitsvot da Torá: por que D’us ordenou trazer a oferenda do ômer, por que D’us ordenou trazer a oferenda dos dois pães e muitos outros. Em todas estas perguntas, a guemará traz uma boa explicação para o motivo da mitsvá, sem responder “Assim D’us disse”. Por que somente em relação à mitsvá do shofar nossos sábios expressam seu espanto pela própria pergunta e respondem “D’us disse!”? No que é diferente de todo o resto do Talmud, onde nossos sábios sempre encontram bons motivos para as mitsvot?
Paralelamente a esta guemará, o Rambam, antes de explicar o motivo da mitsvá de tocar o Shofar, faz uma introdução e se desculpa: “Embora o toque do shofar em Rosh Hashaná seja um decreto da Torá, é possível encontrar uma dica, como se ele estivesse dizendo: ‘Acordem, adormecidos…’” (ou seja, o shofar desperta para a teshuvá). No que esta mitsvá é diferente de outras dezenas de mitsvot em relação às quais o Rambam escreveu o motivo, sem reservas, ou seja sem introduzir dizendo que é um decreto etc?
5) A guemará diz que a forma de tocar o shofar é aprendida da maneira como a mãe de Sisserá chorou. Sisserá era o poderosíssimo general de Yavin, rei de Chatsor, que atacou o Povo de Israel na época da juíza Devorá. Sisserá foi morto por uma mulher chamada Yael. Devorá, em seu canto de louvor a D’us, descreve a mãe de Sisserá chorando, enquanto olhava pela janela, esperando que ele voltasse. Logo surge a questão: por que uma mitsvá tão importante e sagrada é aprendida desta mulher perversa, que chorava porque seu filho cruel não retornou da guerra contra o Povo Santo?
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Introdução às respostas: O Primeiro Shofar
Para conseguir responder a todas estas questões, voltemos à raiz da criação do conceito de “shofar”. Esta aparece em alguns lugares nos midrashím, sendo que o mais extenso é o Midrash Tanchuma, onde relata que, logo depois da akedá de Yitschak, ocorreu um diálogo entre Avraham Avinu e D’us:
“Avraham disse a D’us:
“– O Senhor não prometeu que iria fazer nascer de mim um povo que preencheria o mundo inteiro, como disse (Bereshit 15:5): ‘Conte as estrelas… assim será sua descendência’?
“– Sim.
“– A partir de quem?
“– De Yitschak.
“– Eu poderia ter objetado ao Senhor, mas nada disse. Eu poderia ter dito: ‘Mestre do Universo! Ontem o Senhor disse “Pois é através de Yitschak que você terá posteridade”, e agora o Senhor me diz “e traga-o como oferenda”?’ Mas eu me contive e nada disse. Assim também faça o Senhor: quando os filhos de Yitschak pecarem contra o Senhor e ficarem em apuros, lembre-se da akedá do pai deles, Yitschak, perdoe-os e resgate-os de seu sofrimento.
“D’us respondeu-lhe:
“–Você disse o que tinha a dizer, agora Eu direi de Minha parte: seus filhos irão pecar contra Mim e Eu os julgarei em Rosh Hashaná. Se eles desejam que Eu os perdoe, devem tocar perante mim o shofar naquele dia.
“– O que é shofar?
“– Você não sabe?
“– Não.
“– ‘Volte para trás e olhe’.
“Imediatamente: ‘Avraham então ergueu seus olhos (e viu um carneiro preso por seus chifres numa moita)’. Está escrito aqui ‘por seus chifres’. Disse-lhe D’us:
“– Que eles toquem perante Mim com este chifre e Eu perdoarei seus pecados.”
Nossos sábios estão explicando, neste midrash, que a mitsvá do shofar é um presente que D’us deu a Avraham e seus descendentes pelo mérito de ele não ter questionado a ordem de amarrar seu filho como oferenda a D’us. Se analisarmos bem, perceberemos que D’us o recompensou na mesma moeda (midá kenegued midá):
Avraham tinha muitas promessas Divinas de um futuro glorioso dos descendentes de Yitschak, que nasceu, por milagre, quando ele e sua esposa já eram muito idosos. Quando Avraham ouviu a ordem Divina de amarrar seu filho sobre o altar, imediatamente anulou a si mesmo, anulou suas vontades e tudo o que “merecia” só para cumprir a vontade de D’us. Mais ainda: ele nem mesmo se permitiu questionar D’us sobre a contradição lógica entre a ordem atual e as outras promessas. Assim, Avraham anulou até mesmo seus pensamentos e sua lógica diante da vontade Divina. Avraham anulou não a só a si mesmo, mas também a seu filho, estando disposto a abater a coisa que lhe era mais preciosa. O próprio Yitschak também concordou com isso, e se considerou – perante a vontade Divina – como se fosse um mero animal, apto a ser sacrificado. Graças a esta auto-anulação de ambos os Justos, D’us deu aos seus descendentes, o povo de Israel, o caminho para chegar a esta anulação completa perante Ele – o shofar, como explicaremos agora:
Todo ser humano expressa sua essência e suas vontades por intermédio da fala. É o que diferencia um ser humano de um animal. Sobre o shofar está escrito no Yerushalmi:
“Rabi Yaacov Deromya diz: Por que se toca chifres? Para dizer: ‘Considere como se estivéssemos mugindo qual um animal perante o Senhor’”.
De fato, mesmo a fala mais simples como um “Ah!” exige que o ser humano emita um som que seja seu. Já o shofar só exige o sopro do homem, que não passa de ar, sendo esta a forma mais nula de expressar-se e dirigir-se a D’us, simbolizando a total anulação perante o Criador. Dirigimo-nos a Ele sem palavras e sem fonemas. Nossos sábios dizem que as teruot – os toques do shofar em staccato – são um choro, uma forma de dirigir-se a D’us sem palavras. Também sabemos que o shofar precisa ser curvo para demonstrar submissão e auto–anulação, conforme consta em Rosh Hashaná 26b: “Quanto mais a pessoa se subordinar, melhor”.
Por intermédio do toque do Shofar, fazemos teshuvá completa por tudo o que realizamos contra a Sua vontade, pois, com o shofar, agimos exatamente da forma contrária: anulando-nos completamente perante Ele. Assim, o fato de o shofar despertar para a teshuvá não é somente devido ao som forte: o próprio toque do shofar leva aqueles que se prepararam adequadamente à anulação total perante D’us – a mais profunda teshuvá que existe.
Esta forma de fazer teshuvá é o presente que Avraham Avinu recebeu por ter anulado a si mesmo e ao seu filho Yitschak. Foi a resposta de D’us ao seu pedido que lhe desse uma forma de seus filhos serem perdoados e expiados caso pecassem.
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O Shofar e a anulação
Agora podemos compreender o que nossos sábios dizem: “Toquem perante Mim um chifre de carneiro… considerarei como se vocês tivessem se atado como oferenda”. Como o toque do shofar é uma anulação perante D’us e emana da força de anulação de Avraham e Yitschak no ato da akedá, é muito compreensível que D’us considere nossa anulação como uma akedá.
Esta também é a explicação para o que nossos sábios dizem que a coroação de D’us se dá pelo toque do shofar: a verdadeira coroação de D’us é quando nos anulamos totalmente perante Ele e Sua vontade. Isso é feito pelo shofar, como já vimos. Automaticamente, D’us lembrará de nós para o bem, pois a pessoa que pecou não existe mais, depois que se anulou totalmente com o toque do shofar. É isso que dizem nossos sábios no midrash sobre quem se aproxima de Rosh Hashaná da maneira correta: “Considero como se hoje (Rosh Hashaná) vocês tivessem sido feitos; como se hoje eu os tivesse recriado”.
Agora também entendemos porque Rosh Hashaná é chamado de Yom Teruá (dia de soar o shofar), pois de fato a essência de Rosh Hashaná é como o dia da coroação de D’us, um dia de auto–anulação. Assim, nada mais adequado a este dia do que chamar-se de “Dia do toque do shofar”. O seja este nome não é meramente pelo fato de se fazer o ato de tocar o shofar, mas sim porque a e essência do próprio dia é o que representa o shofar.
De fato, sempre que nos deparamos com o shofar, encontramos a necessidade de auto-anulação:
No Monte Sinai, quando o Povo de Israel aceitou o jugo da Torá e das mitsvot, precisou anular até mesmo seu pensamento, afirmando “Naassê Venishmá” – primeiro faremos e depois ouviremos (isto é, aceitamos cumprir todas as mitsvot sem questionar o que são). Isso significa anular o próprio pensamento perante a Sabedoria Divina, assim como fez Avraham Avinu por não ter levantado questões em relação à Akedá. Por isto, nesta ocasião, no Sinai, nos relata Torá que havia um “som de shofar que ia se intensificando cada vez mais”.
Em milchêmet mitsvá (uma guerra obrigatória), quando o Povo de Israel está pronto para dar sua vida pelo nome de D’us (similarmente à akedá), também fomos ordenados a tocar o shofar.
Em Yom Kipur do ano do Jubileu, quando os escravos ficam livres, D’us ordenou: “Façam tocar o Shofar em toda a sua terra” , pois nossos Sábios explicam que a essência da libertação dos escravos é “pois a Mim os filhos de Israel são escravos – e não escravos dos escravos” . Ou seja: é necessário que os escravos se aperfeiçoem no nível de submissão a D’us, de forma que se anulem diretamente perante Ele.
Assim também, ao decretar jejum público, cujo objetivo é a submissão, é óbvio que se toca o shofar.
Sendo que o Shofar é a submissão perante D’us, é possível entender por que aprendemos a forma de tocar a teruá justamente da mãe de Sisserá. Afinal, a queda de Sisserá foi algo inconcebível: aquele general forte e invencível não caiu nas mãos de diversos heróis, nem mesmo de um simples soldado. Acabou caindo nas mãos de uma mulher – a justa Yael. Neste caso, houve uma submissão das forças do mal perante D’us de uma forma muito clara: basta uma mulher justa do povo santo para sobrepujar o temível general. O choro da mãe de Sisserá expressa a submissão do mal perante o Rei dos reis, Bendito seja. Não há choro melhor que esse para ensinar as leis do shofar.
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O Último Shofar
Agora também podemos entender a essência do “Grande Shofar” do fim dos tempos. Para isto, adiantaremos alguns conceitos.
Sobre a geração do fim dos tempos, diz a Torá: “Quando você estiver aflito e todas estas coisas tiverem lhe acontecido, você finalmente retornará a D’us e O obedecerá”. No tratado de Sanhedrin 97b, afirmou Rabí Yehoshua, que o Povo de Israel inteiro fará teshuvá por bem ou por mal, para que, desta forma, seja redimido: “D’us colocará sobre eles um rei cujos decretos são duros como Haman e Israel fará teshuvá e D’us os trará de volta ao bom caminho”. Assim foi determinado pelo Rambam também nas leis de Tehsuvá 7:5: “A Torá já prometeu que o Povo de Israel fará teshuvá no final de seu exílio e imediatamente será redimido, como está escrito: ‘Quando todas estas coisas sobrevierem a vocês… você retornará até Hashem, seu D’us…”
No midrash Bereshit Rabá 56:9 está escrito:
“‘Avraham ergueu os olhos e viu um carneiro, depois [ficou preso pelos chifres no emaranhado da moita]’ – depois do quê? Disse Rabí Yehuda bar Simon: Depois de todas as gerações, Israel se prenderá aos pecados e acabará emaranhado em aflições. Por fim, será redimido com o chifre do carneiro”.
De acordo com os versículos acima e as palavras de Rabí Yehoshua, a próxima fase depois de se “emaranharem em aflições” – ou seja: “um rei cujos decretos são duros como Haman” – é a teshuvá. É ela que trará a redenção. Por outro lado, de acordo com o midrash acima, a próxima fase é o “Grande Shofar” e é ele que trará a redenção. Seria isto uma contradição? Muito pelo contrário. Segundo a linguagem do midrash, o shofar não é simplesmente uma “sirene” de aviso para a chegada da redenção, e sim o próprio agente da redenção: “Acabarão redimidos com o chifre de carneiro”. Assim, a grande teshuvá do fim dos tempos será acompanhada pelo Grande Shofar pois, com ele, a teshuvá será aprofundada até a completa auto-anulação em níveis que não existiam em nenhuma geração, e assim seremos redimidos.
Nossos Sabios também afirmam, que “o Grande Shofar” vai ser tocado com o chifre direito do próprio carneiro que Avraham usou na akedá. Lembramos acima que a criação da força da anulação pelo shofar (mesmo o shofar de Rosh Hashaná) é um resultado da auto–anulação de Avraham Avinu na akedat Yitschak. Desta forma, é muito compreensível que o “Grande Shofar”, que levará ao ápice da anulação, igual à de Avraham Avinu, seja justamente o chifre do carneiro que D’us lhe mostrou naquela ocasião. Pois, o carneiro que foi oferecido por Avraham, não era um “adendo” ao ato da akedá, mas sim parte integrante da própria anulação, conforme consta no Pesikta Rabati 40:
“‘(Avraham) ofereceu-o (o carneiro) como olá em vez de seu filho’ (Bereshit 22). Disse Rabí Benayá: Avraham ofereceu os imurim (as partes da oferenda que são queimadas) do carneiro e disse: ‘Estes são os imurim de meu filho Yitschak’. Assim disse Avraham sobre cada coisa que fazia com o carneiro: ‘Que o Senhor considere como se eu estivesse oferecendo meu filho Yitschak’”.
E ainda acrescentam nosso Sábios em Pirkê Derabi Eliêzer 30: “A oferenda do carneiro subiu num aroma apaziguante a D’us como se fosse o aroma apaziguante de Yitschak”.
Agora é possível responder a uma pergunta muito intrigante sobre um versículo da profecia de Yirmiyáhu: “Neste tempo, naqueles dias – diz D’us – buscarão a iniquidade de Israel, mas ela não estará lá, e os pecados de Yehudá, mas não serão encontrados, porque perdoarei aos que Eu permitir sobreviver”. Ou seja: o profeta está dizendo que, quando Mashiach chegar, D’us perdoará todos os pecados, parecendo que não será necessária nenhuma expiação. À primeira vista, é difícil de entender: há quatro tipos de expiação (conforme consta em Yomá 6:1), pois há pecados que não são apagados somente pela teshuvá; é preciso alguma expiação. Alguns pecados exigem, além da teshuvá, que a pessoa passe um Yom Kipur. Outros exigem sofrimento e há pecados que só são expiados com a morte, D’us nos livre. Sendo assim, como pode ser que, quando Mashiach chegar, todos os pecados serão apagados, sem necessidade de expiação? À luz do que vimos até aqui, quando o “Grande Shofar” for tocado, o Povo de Israel fará uma teshuvá total e completa, como a qual nunca houve em nenhuma geração, chegando a um nível de auto–anulação igual ao da akedá de Yitschak. Uma auto-anulação total como esta não é menos do que morte física, conforme vemos no Midrashím citados que D’us considerou que Yitschak foi, de fato, abatido. Desta forma, esse tipo de teshuvá engloba dentro de si o nível mais severo das quatro partes da expiação. Automaticamente, “Buscarão a iniquidade de Israel, mas ela não estará lá”.
Não é à toa que o carneiro de Avraham Avinu foi criado na véspera do primeiro Shabat, no período de ben hashemahot (entre o pôr do Sol e a saída das estrelas), conforme consta no Pirkê Avot 5:6. A completa auto-anulação contradiz a realidade material, uma vez que esta existe graças ao tsimtsum de D’us e parece algo separado Dele. Já a própria teshuvá, cujo nível máximo é a completa auto-anulação, foi criada ainda antes da criação do mundo. A teshuvá e o chifre do carneiro pertencem a um nível mais elevado que o mundo material da criação. Agora fica claro como estas duas forças – a teshuvá e o chifre de carneiro – são as forças que levarão o mundo aos dias de Mashiach, que é o início da vida no Mundo Vindouro – uma realidade muito mais elevada que o mundo atual.
De fato, o Maharal escreve algumas palavras que dizem muito: “É sabido que a Teshuvá pertence a um nível muito alto, o nível da redenção”.
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A expressão da anulação nos períodos citados
Partindo do princípio de que o carneiro de Avraham Avinu, o shofar do Sinai e o “Grande Shofar” expressam a auto-anulação, vejamos quão exatas são as palavras de nossos sábios em Bereshit Rabá 56:
“Disse Rabí Yitschak: tudo é em mérito da prostração (ou seja: a auto-anulação perante D’us, cuja expressão física é o ato de prostrar-se e ajoelhar-se). Avraham só voltou em paz do Monte Moriyá porque ajoelhou-se: ‘Ajoelhar-nos-emos e voltaremos a vocês’. A Torá só foi dada graças à prostração, conforme está escrito: ‘Vocês ajoelhar-se-ão ao longe’. As diásporas só se reúnem pelo mérito de ajoelhar-se, coforme consta: ‘Naquele dia, será tocado um grande shofar… e todos ajoelhar-se-ão a D’us no Monte Sagrado em Jerusalém’. O Beit Hamikdash (Templo) só será reconstruído por mérito da prostração, conforme está escrito: ‘Enalteçam Hashem, nosso D’us, e ajoelhem-se em direção à Sua montanha sagrada’. Os mortos só levantarão por mérito da prostração, como está escrito: ‘Venham! Ajoelhemo-nos e prostremo-nos perante D’us, nosso Criador’”.
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Quando a resposta é não responder
Agora podemos tentar entender a guemará que lembramos acima:
“Disse Rabí Yitschak: por que se toca o shofar (tekiá) em Rosh Hashaná? Por que se toca? Porque D’us disse ‘Toquem’!”
Perguntamos acima por que a guemará neste local traz motivos para tantas mitsvot e só para esta diz “Porque D’us disse ‘Toquem’!”? No que esta mitsvá é diferente das outras? Depois de tudo o que explicamos até agora, fica claro que esta é a essência do shofar: D’us disse “Toquem”! Cumprir a vontade Divina sem fazer perguntas. Por isso a guemará nos adianta que, antes de entendermos os demais motivos para a mitsvá do shofar, devemos saber que a própria procura de um motivo é uma espécie de contradição à essência do shofar. Por esse mesmo motivo, o Rambam tomou precaução e, antes de dizer que o shofar desperta para a teshuvá, adiantou a explicação que o shofar é um decreto da Torá. Desta forma, não procuraremos demais os motivos e explicações, desviando da principal força do shofar.
Agora também podemos explicar o diálogo entre D’us e Avraham trazido pelo midrash Tanchumá (citado acima):
“Avraham: ‘O que é shofar?’ D’us: ‘Você não sabe?’ Avraham: ‘Não’. D’us: ‘Volte para trás e olhe’”.
À primeira vista, este diálogo é surpreendente. Afinal, quando alguém pergunta “o que é shofar”, é óbvio que não sabe o que é. Qualquer ser humano entenderia isso. Como pode ser que D’us – que sabe tudo o que se passa no coração e na mente das pessoas – não percebeu que Avraham de fato não sabia o que era um shofar? Baseando-se no que vimos até agora, podemos responder o seguinte: quando Avraham quis entender a essência do shofar, D’us deixou-lhe muito claro que, antes de mais nada, o shofar está acima de sua compreensão. Ou seja, em primeiro lugar D’us levou Avraham a percepção que não sabe o que é shofar. Somente depois, D’us explicou o que era possível entender acerca desta incrível mitsvá.
Mesmo no livro dos Salmos, a mitsvá do shofar é definida primeiramente como “chok” – o nome que levam as mitsvot cujos motivos não devem ser procurados – e imediatamente depois, já é definida como “mishpat” – o nome que levam as mitsvot cujos motivos são muito compreensíveis.
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Explicando a confusão do Satan
Depois de tudo o que foi dito, é possível entender as três explicações colocadas pelos Rishoním (ou seja Rashí; o Rashbá junto com o Ran; e por final, os Tossafot) sobre “confundir o Satan”, conforme vimos no início deste capítulo. E percebermos também que “Elu velu divre Elokim Chaim” (“Estas e também estas são as palavras do D’us vivo”) – as explicações se complementam umas as outras, e não são uma discordância.
Vimos que o shofar leva à auto-anulação. Assim, quando o Povo de Israel se liga à mitsvá do shofar com amor e carinho, tocando-o muitas e muitas vezes, chega a níveis elevados de auto-anulação perante D’us. Nesta situação, não merece mais as acusações do Satan sobre os pecados cometidos durante o ano, uma vez que já se encontra em outro nível. Assim, o Satan não tem o que dizer. Se observarmos bem, esta explicação é justamente o que explicou Rashí, como citado no começo deste capítulo.
Ainda nesta linha de pensamento: Tendo em vista que, o que levou o judeu a pecar no passado foi a preferência que deu aos seus impulsos em vez da vontade de D’us, portanto, agora que o Povo de Israel anulou sua própria vontade, sua teshuvá é completa. D’us, que tudo sabe, testemunha que, neste nível atual, eles não retornarão ao mau caminho. E isto é o foi explicado pelo Rashbá e pelo Ran, citados acima.
Seguindo este raciocínio, podemos concluir que se conseguirem chegar, por intermédio dos toques do shofar, à absoluta auto-anulação, atingirão o nível “do mundo vindouro” e soará o Grande Shofar. Neste momento, o Satan será completamente anulado, uma vez que ele só tem ligação com o mundo material e não com o nível de auto-anulação perante D’us. É por isso que o Satan já começa a ficar atrapalhado assim que os judeus tocam o shofar e começam a se auto–anular. E isto, na verdade, é o que explicam os Tosafot, citados acima.
Que D’us nos ajude a chegar, ainda este ano, ao nível do Grande Shofar para a nossa redenção. Amen, que assim seja Sua vontade.
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