Capítulo 2

O Rei, o Julgamento

 

 

Durante todo o ano, a pessoa reza “HaE-l Hacadosh” (o D’us Santo) e “Melech Ohev Tsedacá Umishpat” (o Rei que ama a retidão e o julgamento), à exceção dos dez dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur, nos quais deve rezar “Hamêlech Hacadosh” (o Rei Santo) e “Hamelech Hamishpat” (o Rei, o julgamento).

(Berachot 12b)

 

O texto da bênção “Hamêlech Hamishpat”, literalmente “o Rei, o julgamento”, é de difícil compreensão. Para ficar gramaticalmente correto, deveríamos falar “Hamelech Hashofet” (O Rei que julga) ou “Hamêlech haossê mishpat” (o Rei que faz justiça). De fato, Rashí (sobre a guemará citada) trata disso e explica que a intenção é “Melech Hamishpat” – o Rei da justiça.

Porém, no Sêfer Hacanê está escrito: “É por isso que Ele é chamado de Hamêlech Hamishpat, ou seja: um Rei que é justiça”. Similarmente, no livro Orchot Chayim de Lunil está escrito, em nome do Raavad: “Hamelech Hamishpat significa: Ele é o Rei, Ele é o julgamento”.

O que significa que o próprio Rei é o julgamento?

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Tentando entender o sistema judiciário de Rosh Hashaná

Antes de tentarmos responder, é preciso adiantar algumas perguntas em relação ao conceito de “mishpat” (justiça) celestial em geral e particularmente em Rosh Hashaná:

1) É conhecida a mishná em Avot 4:

“Rabi Eliêzer ben Yaacov diz: quem realiza uma mitsvá adquire um defensor. Quem comete uma transgressão adquire um acusador”.

Sobre isto, o Ramchal questiona: por que D’us usa um sistema de justiça com acusadores e defensores se tudo é revelado perante Ele e Ele tem o poder de decidir se alguém sairá ganhando ou perdendo no julgamento, sem todo este sistema? Há sobre isto várias respostas. A resposta mais aceita é que D’us organizou Sua justiça conforme a justiça terrena para incutir o temor do julgamento no coração humano e, desta forma, fazer com que a pessoa volte ao caminho correto”. Embora esta resposta seja correta, ainda é insuficiente. Se este fosse todo o motivo, então todo o sistema de justiça que D’us usa não passaria de um “teatro” para atemorizar, não sendo algo essencial e necessário per si, o que com certeza não é assim, pois todos os Seus caminhos estão preenchidos por essência, e como dizem nossos Sábios “O Selo de D’us é a Verdade”. Por tanto, como poderemos compreender melhor a necessidade de acusadores e defensores?

2) Por que Rosh Hashaná, o Dia do Julgamento, foi afixado por D’us antes dos Dez dias de Teshuvá e antes do Yom Kipur que é o dia do perdão? Afinal, o melhor seria adiantar o perdão ao julgamento para, desta forma, sairmos merecedores no julgamento?

3) A recompensa pelas mitsvot não é neste mundo (mas sim, basicamente, no Mundo Vindouro) (Kidushin 39b). Sendo assim, por que há julgamento já neste mundo? Ainda mais se seguirmos a opinião dos Tossafot, segundo a qual o julgamento de Rosh Hashaná é sobre o Mundo Vindouro? Ainda mais que D’us julga o ser humano sobre toda a sua vida quando este falece. Então, para que existe este julgamento anual? Ainda mais que o julgamento anual pode não estar atualizado depois que a pessoa morre, pois esta pode ter feito teshuvá enquanto isso?

4) No Tratado de Rosh Hashaná consta que o shofar “confunde o Satan”. Como já citado no capítulo anterior (capítulo 1, “A Essência do Shofar”), Rashí e os Tossafot discutem acerca da explicação. No capitulo citado mostramos as dificuldades de ambas interpretações, vide lá. Neste capitulo vamos tentar responder estas questões de forma diferente da qual respondemos no capitulo anterior.

5) No Midrash Yalkut Shimoni está escrito:

“Os membros do Povo de Israel vêm em Rosh Hashaná, fazem teshuvá e D’us lhes libera um terço de seus pecados. Chegam os Dez dias de Teshuvá, os bons judeus jejuam neste período e D’us lhes libera a maioria dos pecados. Quando chega Yom Kipur e todos os membros de Israel jejuam, D’us lhes perdoa todos os pecados. Disse Rabi: está escrito ‘Pois Contigo está o perdão para que sejas temido” – o perdão está Contigo desde Rosh Hashaná”.

A partir da linguagem de nossos sábios, podemos entender que o perdão que D’us perdoa nos Dez dias de Teshuvá e em Yom Kipur já está como que “guardado” com Ele, a princípio, desde Rosh Hashaná. Esta informação parece não fazer sentido.

6) Há um midrash incompreensível sobre um versículo do profeta Yoel:

“D’us faz ouvir Sua voz ante Seu exército” (Yoel 2:11): “‘Faz ouvir Sua voz’ – trata-se do som do shofar de Rosh Hashaná. ‘Ante Seu exército’ – trata-se dos dez dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur”.

Em outras palavras, o midrash citado afirma que o shofar (que é chamado de Sua voz) é escutado durante os dez dias (chamados de Seu exercito); afirmação esta que necessita de melhor entendimento, pois afinal, a lei não exige tocar shofar nos Dez dias de Teshuvá. Assim, como o som de Rosh hashaná (o shofar) é ouvido em todos os dez dias de Teshuvá?

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O julgamento automático

Me parece que deve-se esclarecer tudo isso da seguinte forma:

O Rabênu Bachyê traz como um ditado famoso: “Não existe um rei sem existir um povo”. Similarmente, consta no poema Adon Olam: “No momento em que tudo foi criado com Sua vontade, (somente) então Ele foi proclamado Rei”. Rosh Hashaná, o dia da criação do homem, é o dia em que ficou eminente o fato de que D’us é o Rei. Como em todas as festas judaicas, a influência espiritual da data em questão, retorna na mesma data em cada ano e, por isso, a cada Rosh Hashaná, há um eminência mais forte de que D’us é “Rei”.

Continuando o raciocínio, mas agora tocando em conceitos profundos que necessitam um pouco de meditação: Já que neste dia o poder de “Rei” fica eminente, é como se surgisse por si só a pergunta: será que os súditos do Rei de fato se comportam como se houvesse um Rei? Acaso O obedecem ou se rebelam contra Ele? Não se trata de um exame secundário ao conceito de “Rei”, mas a própria a realidade da eminência do Rei como que exige por si só uma análise assim. É como um pingo de tinta que cai sobre um papel branco: A diferença que vemos entre o preto e o branco é resultado automático do fato de ter caído o pingo de tinta. Exemplificando de forma mais clara: Se uma pessoa aparecer vestida com bermuda em um casamento, não é necessário nenhum comentário para analisar o assunto, a própria realidade do local como que “clama” por si própria que dever-se-ia estar vestido de forma adequada ao momento. Da mesma forma, a própria realidade de D’us como Rei suscita a exigência que as pessoas estejam sempre cumprindo Sua vontade. Esta é a essência do julgamento: “Todos (cada indivíduo per si) são examinados em uma só análise – uma análise automática (“clamação por si própria”) como resultado da realidade da eminência do reinado de D’us.

Agora está claro que o fato de D’us ser o Rei é o próprio julgamento. Não se trata de dois conceitos separados. Por isso, nossos sábios determinaram que recitemos, nestes dias, Hamêlech Hamishpat: O Rei – o Julgamento. Conforme diz o Raavad: Ele é o Rei, Ele é o julgamento – pois ambos os conceitos são um só, sendo que a própria existência de D’us o Rei é o julgamento em si.

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Acusadores e Defensores

Uma vez esclarecido que o julgamento é uma realidade que surge per si devido à coroação de D’us, não se tratando de um julgamento organizado ativamente por D’us, podemos nos aprofundar mais no conceito de “acusadores” e “defensores” no julgamento celestial.

Já citamos anteriormente o dito de nossos sábios: “Quem faz uma mitsvá adquire um defensor. Quem comete uma transgressão adquire um acusador”. Segundo dos ensinamentos da Torá oculta, estas palavras de nossos Sábios significam que o próprio ato negativo cria uma força negativa, de forma que a impureza do pecado e o acusador são, na realidade, a mesma coisa. Esta força é o que destrói aquele que a criou – conforme consta em Báva Bátra 16:1 – “Ele é o instinto do mal, ele é o prejudicador e o destruidor e ele é o anjo da morte”. Ou seja, é como se a pessoa criasse um acréscimo ao Satan com seus pecados. Assim o Metsudat David explica o versículo “Matará o perverso o mal” (Salmo 34): “O mal que o perverso comete irá matá-lo, ou seja: o próprio pecado o acusa”. Aprofundando-se um pouco mais, parece que não significa que as próprias forças negativas criadas pelo pecado acusarão a pessoa verbalmente; o próprio fato delas existirem “clama” que seu gerador não merece existir, conforme explicamos com o pingo de tinta preta que cai sobre o papel branco. Tudo isso é verdade em relação às mitsvot também. A vitalidade que a pessoa cria ao fazer um ato positivo “clama” eternidade.

É compreensível, portanto, que no dia em que D’us é Rei com mais força, o mal dos pecados fica mais enfatizado como uma contradição à vitalidade física e espiritual daquele que cometeu o pecado. Esta é a acusação. Da mesma forma, a força positiva dos atos de cada um “clama” vitalidade neste mundo e no mundo vindouro. Esta é a defesa.

Agora é possível explicar a seguinte discussão, entre as linhas de Rabí Yossi e Rabí Natan no tratado de Rosh Hashaná 16a, vendo como Elu veelu divre Elokim Chaim” (tanto a opinião de um como do outro são as palavras do D’us Vivo):

Rabi Yossi disse: “O ser humano é julgado todo dia” (ou seja durante o sono). Rabí Natan disse: “O ser humano é julgado a toda hora” ( ou seja a todo momento).

À luz do que vimos aqui, de fato existem os três níveis de “julgamento” – o de Rosh Hashaná, o de toda noite e o de todo momento – mas em graus diferentes. Afinal, a todo momento o “bem” e o “mal” que a pessoa faz “clamam” uma realidade de julgamento e de prestação de contas. No entanto, esta realidade fica mais eminente quando o ser humano se desliga do corpo, à noite, e se posta perante a glória de D’us. Fica mais eminente ainda no dia de Rosh Hashaná, cuja essência é o reinado de D’us.

Vimos que o Ramchal perguntou por que D’us precisa de acusador e advogado de defesa, se tudo está revelado perante Ele. À luz do que explicamos, a pergunta nem existe, pois, na verdade, não há acusador nem advogado literalmente falando, somente uma realidade de bem e mal que exige uma prestação de contas devido à revelação do Rei.

No início do capítulo, perguntamos: se, de acordo com os Tossafot, o julgamento em Rosh Hashaná é sobre o Mundo Vindouro (e não somente sobre este mundo), por que há julgamento em Rosh Hashaná? Afinal, a recompensa pelas mitsvot não são, basicamente, neste mundo e, de qualquer maneira, há um julgamento na hora em que a pessoa falece. Segundo o que explicamos aqui, de fato o julgamento em Rosh Hashaná não é resultado de uma necessidade técnica de um balanço anual, mas ele é uma realidade que é fruto da revelação do reinado de D’us. Esta revelação cria um estado de análise e julgamento de todas as forças positivas que declaram uma vida eterna, assim como o contrário, D’us nos livre.

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Dez dias de Teshuvá

A partir destes princípios, é possível entender muito bem o conceito de “benoniím” – medianos – e a postergação de seu julgamento até Yom Kipur:

Benoniím são pessoas cuja metade dos atos é positiva e a outra metade, negativa. Nestas pessoas, a vontade de D’us e o contrário de Sua vontade estão misturados, sem pender para um dos lados. Assim, por um lado, não seria correto dizer que eles devem perecer, pois isso seria uma contradição à vontade Divina que existe dentro deles. Por outro lado, a realidade da eminência do Reinado de D’us não permite a existência da desobediência que há dentro do benoní. Assim, a força de “Reinado” de Rosh Hashaná exige mudança de conduta imediata e apagamento dos pecados. Desta forma, o benoní recebe, em Rosh Hashaná, as ferramentas para fazê-lo: trata-se dos Dez dias de Teshuvá que culminam em Yom Kipur. Os dez dias são o tempo necessário para completar todos os dez níveis de teshuvá.

É isso que o Midrash Yalkut Shimoni (trazido no início do capítulo) quer dizer ao afirmar que o perdão dos Dez dias de Teshuvá e de Yom Kipur já está com D’us desde Rosh Hashaná: a especificidade que os Dez dias de Teshuvá e Yom Kipur têm para o perdão e a expiação vem da força de Rosh Hashaná, pois a realidade da eminência do Reinado de D’us (que fica eminente em Rosh Hashaná) é que “obriga” a existência da oportunidade do perdão (que demora dez dias), como explicado.

Por isso vemos que o nível de Hamelech Hamishpat continua até o final destes dez dias, conforme escrito em Berachot 12b: “Quando ‘D’us dos Exércitos elevou-Se no julgamento’? Trata-se dos dez dias de Rosh Hashaná até Yom Kipur”. Como são necessários dez dias para completar o que fica exigido pelo reinado de D’us em Rosh Hashaná, cada um destes dez dias leva consigo este nível de julgamento que deriva do reinado de D’us revelado em Rosh Hashaná.

Agora já está respondida a famosa pergunta: por que os dez dias de Teshuvá e Yom Kipur sucedem Rosh Hashaná e não o contrário? A resposta é que a força de expiação dos dez dias de Teshuvá e de Yom Kipur não é um “presente de graça”; trata-se do resultado da realidade da eminência de “Rei” em Rosh Hashaná. Sem ocorrer esta eminência, não há motivo que obrigue a existência deste bônus.

Talvez agora seja possível entender um pouco o surpreendente midrash que trouxemos: “‘Faz ouvir Sua voz’ – trata-se do som do shofar de Rosh Hashaná. ‘Ante Seu exército’ – trata-se dos dez dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur”. Como o som do shofar de Rosh Hashaná é ouvido em todos os dez dias de Teshuvá?

A partir do que vimos é possível explicar da seguinte maneira: o som do shofar é a coroação de D’us, ou seja o símbolo da eminência do Seu Reinado. E, como explicado, esta realidade desta eminência causa a existência dos dez dias de Teshuvá, portanto o “som” da coroação Divina é percebido durante todos estes dias.

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O Shofar e a Confusão do Satan

Para terminar, depois de termos esclarecido que a acusação do Satan é, na verdade, a força negativa dos pecados cuja existência desperta o julgamento, é possível entender bem o que Rashí explica sobre isso. Rashí diz que, quando o Satan vê o amor que temos pela mitsvá do shofar, não tem mais o que objetar. Vimos que a acusação é a própria existência dos pecados. Quando o Povo de Israel demonstra seu amor e sua ligação a uma mitsvá, acaba tornando indistinta sua ligação ao mal. Afinal, quando alguém está ligado ao bem e ao positivo, é difícil ver sua ligação com o mal. Assim, mesmo que seus pecados ainda não tenham sido expiados e ainda mereçam punição, já não parecem um pingo de tinta preta sobre uma folha branca. Há uma confusão, ou seja uma falta de clareza na imagem dos membros de Israel como rebeldes contra o reinado de D’us. Automaticamente, aquele mal não se destaca tanto e não “clama” acusação contra eles. Esta é a denominada “confusão” do Satan que não tem o que objetar.

Agora também podemos entender muito bem as palavras dos Tossafot. Conforme explica o Semag, o Satan deixa de acusar porque o toque do shofar “lembra” o toque do Grande Shofar da redenção, momento em que o Satan será anulado. Nossa pergunta era: acaso o Satan é um ser humano para se emocionar a ponto de “perder a cabeça”? A resposta é que o toque do shofar suscita a lembrança de que haverá um dia em que o mal será anulado do mundo. Desta forma, o mal criado pelos pecados passa a significar algo provisório e passageiro. Como toda a essência da acusação em Rosh Hashaná é o simples fato de existir o mal perante a revelação do reinado de D’us, o shofar, neste caso, faz com que o mal não tenha uma existência real, e sim pareça algo imaginário e passageiro. Assim, não existe aquela clareza como a da tinta preta sobre a folha branca (“confusão”) e, automaticamente, isso deixa de representar uma acusação (ou seja não há a “clamação” citada).

Observação: neste capítulo explicamos os conceitos “mishpat – julgamento”, “categor – acusador” e “sanegor – advogado de defesa” de forma abstrata e não conforme o entendimento superficial e simples. Mesmo assim, conforme escrevi em algumas observações, é difícil afirmar que estes conceitos não possam ser entendidos também da forma literal (mas obviamente no plano espiritual e não material). De qualquer modo, esta é uma das diversas maneiras de explicar a realidade espiritual do julgamento em Rosh Hashaná e tudo o que o acompanha.

 

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MIGDAL GOOD