Shavuot
Capítulo 11
Faremos e Ouviremos
“Tudo o que disser D’us, faremos e ouviremos”
(Shemot 22:7)
A frase citada foi dita pelo povo de Israel aos pés do Monte Sinai, antes da outorga da Torá, quando afirmaram que estão dispostos a receber sobre si as leis da Torá. A ordem mais logica das palavras deveria ser “ouviremos” (ou seja vamos escutar quais são as leis) e então “faremos” tudo segundo as leis. O fato de terem antecipado “faremos” antes de “ouviremos” significa que estão dispostos a aceitar o cumprimento das leis mesmo que ainda não saibam o que são. Este foi um grande ato por parte do povo de Israel, e sobre isto há a seguinte passagem no Talmud (Tratado de Shabat 88a):
“Rabi Simai interpretou: Quando o Povo de Israel disse ‘faremos’ antes de ‘ouviremos’, vieram seiscentos mil anjos serviçais e trouxeram a cada um dos membros do povo duas coroas: uma por ‘faremos’ e outra por ‘ouviremos’. Quando o povo pecou, desceram um milhão e duzentos mil anjos de destruição e lhes tiraram as coroas (Rashí: cada um veio tirar uma coroa).
Disse Rabí Elazar: Quando o Povo de Israel disse ‘faremos’ antes de ‘ouviremos’, saiu uma Voz Celestial e lhes disse: ‘Quem revelou aos meus filhos este segredo que os anjos usam?…’
Há alguns pontos desta Guemará a enfatizar e questionar:
1) Da linguagem da Guemará parece que o motivo pelo qual o Povo Santo mereceu duas coroas não foi por ter dito “Faremos e ouviremos”, mas por ter adiantado o “faremos” ao “ouviremos”. O Gaon Rabí Yaacov de Lissa Z.T.L. pergunta[1]: se é assim, o povo só deveria merecer uma coroa e não duas!?
2) De acordo com as palavras de nossos sábios, foi preciso um anjo para tirar cada coroa, por isso o número dobrado de anjos de destruição – dois para cada judeu. Disto fica parecendo que cada coroa é considerada algo per si, de fato são necessários dois anjos, pois “um anjo só não realiza duas missões”[2]. Porem, para colocar as coroas foi preciso somente um anjo para cada duas coroas, então parece que ambas as coroas são uma missão só e não duas? Em suma, por que a mudança no número de anjos na hora de colocar e de tirar as coroas?
3) Quanto à Voz Celestial que perguntou: “Quem revelou aos meus filhos este segredo?”: significa que havia uma informação oculta que foi descoberta pelo Povo de Israel. Qual seria a informação, neste caso? O fato do Povo de Israel dizer “faremos e ouviremos”, consiste num ato muito louvável que demonstra um nível espiritual muito alto de amor a D’us e confiança em Sua bondade, mas o que tem a ver com “conhecimento” de alguma coisa? Pelo contrário, toda a beleza do ato é justamente por terem aceitado ser saber de nada!?
*
O Saduceu e Ravá
Primeiramente, devemos examinar também a continuação da Guemará no trecho citado acima, onde nos conta a Guemará um diálogo interessante que ocorreu no período dos Emoraím, com o Sábio chamado Ravá:
Um saduceu viu Ravá aprofundando-se no estudo, sendo que Ravá estava sentado de forma que seus pés estavam apoiados em cima dos dedos de suas mãos, e estava tão concentrado em seu estudo que esmagou seus próprios dedos até sangrarem, sem perceber. Disse-lhe o saduceu: ‘Vocês são um povo precipitado por terem adiantado a boca aos ouvidos, e até hoje são precipitados. (No monte do Sinai) primeiro vocês deveriam ter verificado se conseguiriam aceitar a Torá e, só depois, aceitar. Se vissem que não tem a capacidade de aceita-la, não deviam ter aceitado’.
Ravá respondeu-lhe: ‘Nós nos conduzimos com D’us com ingenuidade[3] (Rashi: nos comportamos com ingenuidade de coração, como fazem pessoas que amam, e confiamos que Ele não nos daria algo acima de nossa capacidade), e sobre nós foi escrito: “A ingenuidade do homem correto o guia” (Mishlê 11:3). Já sobre aqueles que se conduzem com calúnias está escrito: “Mas as distorções dos traiçoeiros os destroem” (ibid.).
Este trecho, também nos deixa com algumas questões:
1) Por que o fato de Ravá estar estudando concentrado sentado sobre os dedos fez aquele saduceu lembrar-se de “faremos e ouviremos”? O que passou pela cabeça do saduceu, naquele momento, para reclamar do comportamento de um povo cerca de mil e seiscentos anos antes, reclamando que foram precipitados? E da onde ele deduziu a afirmação “e até hoje são precipitados”? Afinal, o comportamento de Ravá em nada era “precipitado”.
2) Por que o saduceu desprezou o fato de terem dito “faremos e ouviremos”? Afinal, este fato aparece na Torá escrita, respeitada por ele também.
3) Também é difícil de entender a objeção de Ravá, segundo a qual o povo de Israel recebeu a Torá com a força de sua ingenuidade, por ter confiado em D’us que não lhe ofereceria algo que ele não pudesse aguentar. Afinal, o midrash[4] traz que D’us ofereceu a Torá a todos os povos (sendo que somente o povo de Israel a aceitou), mesmo que os outros povos com certeza não teriam capacidade de cumpri-la de forma plena. D’us tem Seus motivos para ter oferecido aos povos[5], mas de qualquer forma daqui há uma prova que D’us pode oferecer a Torá mesmo a quem não condiz com ela.
4) Ravá cita o versículo: “A ingenuidade do homem correto”. Qual é a ligação entre “ingenuidade” e “retidão” (virtude de ser “correto”), ou seja por que a pessoa que tem ingenuidade é justamente um homem correto?
5) Por que Ravá disse que aquele saduceu se ocupava de calúnias? Calúnia significa inventar um fato que nunca ocorreu. O saduceu não inventou um fato; só interpretou (de forma errada) um fato que realmente aconteceu – o adiantamento de “faremos” a “ouviremos”.
6) Qual é o ponto de ligação entre “calúnia”, “distorção” e “traição”, conforme Ravá mencionou no versículo que trouxe sobre aquele saduceu? Em suma, qual é o problema do saduceu: calúnia, distorção ou traição?
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O significado de “ouvir”
Para explicar tudo isso, devemos começar com as palavras do sagrado Zôhar[6]: “‘Faremos e ouviremos’: ‘faremos’ se refere a bons atos, enquanto que ‘ouviremos’ a se refere ao estudo da Torá”. São famosas as palavras do Bet Haleví sobre este assunto: quando o Povo de Israel disse “e ouviremos”, não se trata somente de uma audição técnica para saber o que foram ordenados, mas significa estudar a Torá pelo próprio estudo. Afinal, o estudo da Torá é uma mitsvá per si e não somente um meio para se chegar ao cumprimento das mitsvot. Isso fica claro por terem dito “ouviremos” depois de “faremos”: pois esta linguagem indica que mesmo depois que já estiverem em um estado no qual já fazem as mitsvot – estado este quando obrigatoriamente já sabem o necessário para cumpri-las pois caso contrário não teriam como faze-las – eles desejam avidamente ocupar-se com o estudo da Torá. Por isso, explica o Bet Haleví, eles mereceram duas coroas em vez de uma: ao adiantarem o “faremos” ao “ouviremos”, demonstraram que desejavam atingir dois níveis: o da prática e o do estudo.
Precisamos afiar ainda mais a doce resposta do Bet Haleví: afinal, a linguagem da Guemará aponta que o motivo de terem merecido as duas coroas foi pelo próprio fato de terem adiantado o “faremos” ao “ouviremos” e não pelo fato de almejarem ambos os degraus?
Tentemos explicar, com a ajuda de D’us:
O Povo de Israel se encontra após a saída do Egito, as dez pragas e todos os sinais e maravilhas que D’us fez com Sua Mão Forte. O povo entendeu muito bem que a grandeza de D’us vai muito além de qualquer compreensão e chegou à seguinte conclusão: Sua Torá, que é na verdade Sua vontade e Sua sabedoria, também é maior que qualquer compreensão. Sendo assim, o ser humano, uma criatura limitada, não é capaz de decidir se deve receber a Torá ou não, uma vez que esta decisão será feita de acordo com suas limitações. Pode até ser que pareça ao Povo de Israel que a Torá não condiz com sua natureza e força; isso é resultado da profundidade do assunto e da insuficiência daquele que o tenta captar. É como um garoto de seis anos ter que decidir se deve investir em determinadas ações ou não. Ele não dispõe de ferramentas para uma decisão dessas; de que adianta ele verificar os detalhes do negócio em questão para decidir? É por isso que o Povo de Israel respondeu em uníssono: “Faremos” ainda antes de saber qualquer coisa, pois sabiam que de nada adiantaria pedir para analisar os dados. Em vez disso, entenderam que não deveriam negar a Torá por medo que ela não lhes fosse adequada. Uma vez que perceberam que não dispunham de ferramentas para analisar se eram capazes ou não de receber a Torá, confiaram em D’us que, com certeza, não jogaria sobre eles a responsabilidade da decisão. A própria pergunta Divina se eles queriam receber a Torá ou não é uma prova de que eles conseguiriam, pois não tinham como analisar a questão. Já as demais nações não tiveram o mérito de compreender que não dispunham da capacidade de decidir se recebiam ou não a Torá. Para elas, a pergunta foi somente uma forma de impedir que viessem a reclamar no futuro e para que elas mesmas se distanciassem da Torá por sua própria decisão.
Justamente porque o Povo de Israel compreendeu que a Torá é uma sabedoria tão elevada, desejou estudá-la também, de forma que cada um de seus membros pudesse captar parte desta maravilha, de acordo com seu nível e capacidade. Esta é a afirmação “e ouviremos” – de acordo com o sagrado Zôhar: eles queriam estudar a Torá[7].
Assim, o conhecimento da sublimidade da sabedoria Divina, que fez com que eles dissessem “faremos” antes de saber as mitsvot, é o mesmo conhecimento que os fez pedir “e ouviremos”. Agora aprendemos que o adiantamento de “faremos” ao “ouviremos” é um só grau que se expressa em dois: o entendimento sobre a sublimidade da Torá fez tanto com que eles aceitassem as mitsvot confiantemente como que pedissem para estudá-la.
Dois que são um
Agora é possível voltar à pergunta do Rabí Yaacov de Lissa: por um lado, parece que o Povo de Israel mereceu a coroação por ter adiantado o “faremos” ao “ouviremos”. Por outro lado, receberam duas coroas em vez de uma. A resposta é que o motivo para a coroação era um só: o entendimento sobre a sublimidade da Torá (faremos e depois ouviremos). No entanto, como a expressão prática desta compreensão ocorreu em dois campos – “faremos” (aceitamos a prática das mitsvot) e “ouviremos” (queremos também estudar a Torá) – receberam duas coroas. Agora também entendemos por que era suficiente um anjo para colocar duas coroas: a coroação era uma recompensa pela “compreensão” do Povo de Israel. Como esta compreensão expressou-se em dois atos positivos, a recompensa veio também na forma de duas coroas. Por outro lado, quando o povo pecou com o bezerro de ouro, era necessário retirar suas coroas, sinais de grandeza e de glória, que não condiziam com seu estado espiritual depois do pecado. Assim, cada coroa retirada era um prejuízo per si, uma punição per si. Por isto, já que “um anjo só não realiza duas missões”[8], foi preciso de um anjo para cada coroa, ou seja: dois anjos por pessoa.
Agora podemos responder à terceira questão que apresentamos no início do capítulo, em relação ao que disse a Voz Celestial: “Quem revelou aos Meus filhos este segredo?” – como se fosse uma informação obtida e não somente a um alto nível de confiança e amor em D’us. Vimos que o adiantamento de “faremos” ao “ouviremos” é decorrente do conhecimento da grandiosidade da Torá, que até então era conhecida somente pelos anjos que sabiam a Torá e sua essência. Quando o Povo de Israel chegou a esta compreensão sozinho, é como se tivessem “revelado um segredo”, o que justifica essa expressão de admiração com a qual o Criador os louvou.
A reclamação do saduceu
Agora também podemos entender a história de Ravá e o saduceu. Ravá encontrava-se num estado de concentração tão forte que não percebeu que estava ferindo seus próprios dedos. Ao ver aquela cena, o saduceu percebeu que uma concentração tão grande só era possível num ser humano que teve que esforçar sua mente de forma espantosa para entender algo muito profundo. Se Ravá, que era um líder famoso por sua capacidade intelectual, precisava de um esforço tão grande até perder a sensibilidade física, está provado que a Torá é uma sabedoria elevadíssima, muito além de qualquer sabedoria humana. Ao constatar isso, o saduceu lembrou-se da afirmação “faremos e ouviremos” no Monte Sinai, que foi a compreensão do povo de que a Torá é a sabedoria Divina que é muito mais elevada que qualquer compreensão. Tudo isso contradizia toda a visão distorcida do saduceu: se a Torá é somente a Torá Escrita, conforme objetavam os saduceus, sem todas as explicações da Torá Oral, não há tanta profundidade assim na Torá. Por conta disso, o saduceu adotou uma posição defensiva e menosprezou a afirmação “faremos e ouviremos”, como se fosse resultado de precipitação e falta de ponderação. Desta forma, o saduceu tentou anular o efeito que a cena de Ravá estudando lhe produzira, justificando, assim, sua forma distorcida de viver.
Sobre isso respondeu-lhe Ravá que a conduta do Povo de Israel não foi resultado de precipitação: como a sabedoria do Rei dos Reis vai além de qualquer compreensão, o povo entendeu que não lhe era exigido ponderar se combinava com a Torá ou não, entenderam que o certo era aceitar a Torá com “ingenuidade”, ou seja qual ovelhinhas que seguem seu Pastor confiantemente. O povo teve o bom senso de serem “ingênuos” justamente graças à sua “retidão” (virtude de serem “corretos”) – ou seja retidão de pensamento para chegar à conclusão de que, se D’us é o Todo-Poderoso, Sua sabedoria com certeza está além de qualquer compreensão humana, o que então implica que não dispunham de nenhuma ferramenta para averiguar sua adequação à Torá. É por isso que Ravá usa o versículo “A ingenuidade do homem correto”.
Por outro lado, Ravá explicou ao saduceu que seu argumento – segundo o qual a afirmação “faremos e ouviremos” foi um ato precipitado – é uma calúnia. Uma vez que, no fundo, o saduceu sabia que sua objeção estava errada, esta é chamada de “calúnia” (ou seja uma “distorção” proposital da verdade) e não de “engano”. O saduceu tentou achar defeito para apaziguar sua consciência devido ao seu modo de vida falso que provém da traição a D’us e à Sua Torá. Seu fim (sua punição Divina) é a destruição, como cita Ravá o versículo: “Mas as distorções dos traiçoeiros os destroem”. Assim, todas as palavras de Ravá foram extremamente precisas.
1
[1] Em seu livro Emet Leyaacov, sobre a guemará em Shabat.
[2] Bereshit Raba 50.
[3] A palavra “ingenuidade” aqui tem um sentido positivo (como inocência, pureza) e não pejorativo. Em hebraico o “ingênuo” é chamado de “completo” (“perfeito”) por ser esta uma boa virtude e não uma falta de visão perspicaz.
[4] Mechilta Derabi Yishmael sobre parashat Yitrô e outros.
[5] De fato, o motivo pelo qual D’us ofereceu a Torá às nações não é porque existe a possibilidade de elas serem aptas a recebê-la, mas conforme diz o midrash: “Para não lhes dar o que objetar depois contra D’us, alegando que ‘se tivéssemos sido interpelados, teríamos aceitado’. Vemos que as nações foram interpeladas e não aceitaram”.
[6] Zôhar Chadash, parashat Acharê-Mot, 77a.
[7] Aliás, baseando-se no Zohar, é possível explicar mais um dito de nossos sábios. No tratado de Shabat (Ibid) consta: “Diz Rabí Chamá filho de Rabí Chaniná: por que está escrito ‘como a macieira entre as árvores da floresta’? Por que o Povo de Israel é comparado à macieira? Para ensinar-lhe: assim como os frutos da macieira nascem antes de suas folhas, o povo de Israel disse primeiro ‘faremos’ e depois ‘ouviremos’”. Nossos sábios descrevem que o “faremos” é comparado aos frutos da macieira. O fruto sempre simboliza a ação e o resultado. No entanto, não dá para entender por que o “ouviremos” é comparado às folhas! De acordo com o Zôhar, é possível entender: segundo a ciência, o papel das folhas é captar o oxigênio, o gás carbônico e principalmente a luz solar para transformá-los em energia. Este, de fato, é o papel de “ouviremos” – captar a luz da Torá e absorver sua maravilhosa sabedoria.
[8] Bereshit Raba 50.