Capítulo 4
A Força de Renovação de Yom Kipur
“‘Sou negra e bela’ … Sou negra todos os dias do ano e bela em Yom Kipur… Sou negra neste mundo e bela no mundo vindouro”.
(Shir Hashirim Rabá 1)
À primeira vista, o que nossos sábios dizem parece claro: o povo de Israel está “sujo” com a impureza dos pecados ao longo do ano (a cor escura representaria fuligem ou sujeira parecida) e, em Yom Kipur, purifica-se, de forma que seus pecados se tornam alvos como a neve (ou seja: “bela”). Da mesma forma, neste mundo existe a má inclinação e nem sempre se faz a Vontade Divina (sendo que a cor escura representaria a falta de claridade) enquanto, no mundo vindouro, não existirá mais o poder do mal e a glória do reinado de D’us será revelada (ou seja: “bela”), que assim seja brevemente. No entanto, essa interpretação contradiz o sentido do versículo (‘Sou negra e bela’), segundo o qual parece que não existe um estado negro e um belo, e sim estamos falando da mesma mulher, que é negra e nem por isso deixa de ser bela. Assim, é preciso explicar como as palavras de nossos sábios são consistentes em relação ao sentido do próprio versículo – tanto na comparação entre os dias do ano e Yom Kipur como na comparação entre este mundo e o mundo vindouro.
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Alegria com o lixo
Lembremos mais um dito de nossos sábios em relação a Yom Kipur que também é surpreendente:
“Outra interpretação ao versículo ‘…D’us criou todos os dias e para Si escolheu um dia só’: trata-se de Yom Kipur para Israel, que é um dia de grande alegria perante o Criador do Mundo, que o deu com muito amor ao Povo de Israel. Uma parábola comparada a isto: Um rei de carne e osso cujos súditos e moradores de sua casa retiram os lixos e os jogam em frente à porta do rei. Quando o rei sai e vê os lixos, fica num estado de extrema alegria. É assim que se parece Yom Kipur, que D’us deu com muito amor e alegria. Não só isso: no momento em que D’us perdoa os pecados de Israel, Ele não fica triste, mas muito feliz, e diz às montanhas e aos montes, aos canais e aos vales: ‘Venham e alegrem-se Comigo numa grande alegria por Eu perdoar os pecados de Israel’. Por isso, a pessoa deve recordar [toda a História] desde o dia em que D’us escolheu Avraham até aquele momento, e todas as bondades e justiças que D’us fez com Israel a cada momento”(Taná Devê Eliyáhu Raba, parashá 1).
Estas palavras parecem incompreensíveis por alguns motivos:
1) A própria parábola não faz sentido: o rei com certeza estava feliz com o fato de que seus escravos e parentes retiravam o lixo de seu palácio, mas por que jogar o lixo “em frente à porta do rei” e não em um lugar afastado? Mais ainda: parece, seguindo as palavras do midrash, que o Rei estava feliz com o próprio lixo. Qual é o motivo de tal alegria?
2) O midrash faz questão de frisar: “Não só isso: no momento em que D’us perdoa os pecados de Israel, Ele não fica triste, mas muito feliz”. Quem pensaria diferente, a ponto do midrash ter que nos explicar isto? D’us, tão misericordioso e cheio de compaixão, ficaria triste com o bem de Israel? Já o versículo diz explicitamente: “Por acaso desejo a morte do perverso? – diz D’us – Mas sim que ele retorne de seu caminho e viva!” (Yechezkel 18).
3) Mais surpreendente é o final do midrash: “Por isso, a pessoa deve recordar [toda a História] desde o dia em que D’us escolheu Avraham até aquele momento, e todas as bondades e justiças que D’us fez com Israel a cada momento”. Ninguém discute que é muito importante reconhecer a bondade de D’us e lembrar todo dia, a toda hora, todo o bem, os milagres e as maravilhas que Ele fez conosco e nossos antepassados. Mas por que justamente o fato de que D’us fica feliz com o perdão de nosso povo serve como motivo para intensificar este reconhecimento?
Mais algumas questões
Há mais um midrash que precisa ser analizado: “Rabi Nehorai diz: por que foi dado um período de satisfação a Israel – dez dias de Rosh Hashaná a Yom Kipur? Paralelamente aos dez testes pelos quais passou Avraham Avinu e foi perfeito em todos”. Segundo isto, Yom Kipur – o décimo dia – é paralelo ao décimo e último teste, Akedat Yitschak. (É interessante notar que, de acordo com algumas opiniões, Akedat Yitschak ocorreu em Yom Kipur). Falta entender por que Yom Kipur é paralelo justamente a Akedat Yitschak?
Em Pesikta Rabati 40 consta: “Disse D’us a Israel: Façam teshuvá nestes dez dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur e Eu os declararei inocentes em Yom Kipur e os recriarei como novas criaturas, conforme está escrito: ‘D’us fez o firmamento’”… Por que a recriação do homem em Yom Kipur é comparada justamente à criação do firmamento e não à criação geral do mundo?
Acima de tudo, é preciso tentar compreender, apesar de nossas limitações, o conceito básico de “Itsumô shel yom mechaper” – “o próprio dia expia”. Nossos sábios explicam que o dia expia somente por meio da teshuvá. Sendo assim, o que o “próprio dia” acrescenta à força da teshuvá de forma que a integração de ambos expie os pecados?
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As Tábuas da Lei e o Báal Teshuvá
Para tentar esclarecer tudo isso, analisemos primeiro a raiz da força de Yom Kipur:
Yom Kipur é o dia no qual a geração do deserto jejuou e conseguiu expiação depois do pecado do bezerro de ouro. Conforme descrito longamente no Taná Devê Eliyáhu e no Tanchuma, foi neste dia que recebemos as segundas Tábuas da Lei, e “Por isso foi fixado aquele dia – ou seja, Yom Kipur – como expiação para sempre”.
Existem diferenças essenciais entre as primeiras e as segundas tábuas: sobre as primeiras, a Torá diz: “As tábuas foram feitas por D’us”. Já as segundas tábuas foram feitas por Moshê Rabênu, conforme escrito: “Corte para tí duas tábuas de pedra iguais às primeiras”. Isso representa tanto uma desvantagem como uma vantagem. A desvantagem é que o nível de santidade das segundas tábuas não é tão alto como o das primeiras, obras de D’us e consideradas “um despertar de cima” (it’aruta dileela). Por outro lado, há certa vantagem nas segundas tábuas, feitas pelo esforço humano e como mérito de Israel, consideradas “um despertar de baixo” (it’aruta diletata). Aprendemos disto, que mesmo quando o Povo de Israel faz teshuvá e tem seu pecado expiado (ato este pelo qual tivera, o mérito de receber as segundas tabuas), isto não significa que tudo volta a ser como antes. Não colaram os cacos das primeiras tábuas. O que acontece é que se forma uma nova realidade a partir do esforço do Báal Teshuvá, realidade esta que tem vantagens e desvantagens.
Esta é a diferença básica entre tsadikim (justos) absolutos e baalê teshuvá: o tsadik absoluto tem a vantagem de manter sua santidade elevada e sua alma intacta exatamente como a recebeu do Criador – assim como as primeiras tábuas, obra de D’us. Já o Báal Teshuvá se constrói a partir do it’aruta diletata (“o despertar de baixo” – a mudança de estado espiritual resultante da iniciativa humana). Embora não tenha as vantagens do tsadik absoluto, tem a vantagem de ter se construído sozinho.
A Guemará diz: “Disse Rabí Chiyá bar Abá, disse Rabí Yochanan: todos os profetas só profetizaram para os baalê teshuvá; já os tsadikim absolutos, “olho nenhum viu D’us além de ti”. Ele discute com Rabí Abehú, que diz: “No nível em que se encontram os baalê teshuvá, tsadikim absolutos não se encontram”. O Gaon de Vilna, em seu Beur Agadot, comenta essa discussão e afirma que ambas as linhas são corretas. Esta afirmação pode ser bem entendida segundo o que explicamos, pois realmente de certo ponto de vista o tsadik absoluto tem vantagem sobre o o Báal teshuvá, enquanto que, por outro lado, o Báal teshuvá tem vantagens que o tsadik absoluto não possui.
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A nova personalidade do Báal Teshuvá
Neste ponto cabe explicarmos melhor a vantagem do báal teshuvá, pois isto nos será necessário na continuação do desenvolvimento das idéias:
O báal teshuvá, de acordo com os dados de que dispõe, cria uma nova personalidade que nem sempre combina com a personalidade que tinha quando ainda era um “tsadik absoluto”, antes de pecar. O Rambam escreve:
“Qual é a teshuvá absoluta? É quando uma pessoa chega à mesma oportunidade que teve no passado de cometer um pecado, tem toda capacidade de repeti-lo, mas não o faz devido à teshuvá – não por medo ou fraqueza. Como assim? Digamos que um homem teve relações ilícitas com uma mulher e, tempos depois, acaba ficando sozinho com ela outra vez, sendo que ele ainda tem o mesmo amor por ela, a mesma saúde física e está no mesmo local em que pecou da outra vez. Caso ele se separa dela e não comete o pecado – este é alguém que fez uma teshuvá absoluta”.
Assim, parece que o báal teshuvá, por meio de seu trabalho, adquiriu uma “resistência” interna que não tinha antes, tendo a força para passar por um teste, força de que não dispunha antes de pecar, quando era um tsadik . Fato é que ele pecou na primeira vez e agora, não. Por outro lado, o tsadik absoluto, que nunca pecou, tem uma santidade a mais por nunca ter deixado uma mácula em sua alma, a fagulha Divina.
Veja ainda o que escreve o Rambam: “Baalê teshuvá costumam ser extremamente humildes”. Aqui vemos mais um detalhe de uma mudança positiva na personalidade do báal teshuvá, em contrapartida com outras virtudes que existem justamente na personalidade do “tsadik absoluto”. Estes são apenas alguns exemplos da mudança de personalidade que passa o indivíduo desde seu perfil antes do pecado até seu perfil pós-teshuvá.
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O papel de Yom Kipur: renascença espiritual
À luz de tudo o que foi dito, percebemos que a teshuvá não funciona para “apagar” a marca do pecado. A personalidade e a realidade depois da teshuvá são diferentes do que eram e estão erguidas sobre os alicerces do pecado. Assim, mesmo que, de alguns pontos de vista, a nova personalidade e a nova realidade são ainda melhores do que antes de pecado, o pecado ainda é reconhecível naquela pessoa. A teshuvá não tem o poder de expiar (apagar) totalmente. Afinal, o pecado como que “clama” ainda dentro da personalidade da pessoa e sua marca “pode ser vista” em sua testa, ou seja o próprio novo perfil revela “pistas do crime”.
Exemplifiquemos com uma pessoa que, ao sair da cadeia, ganhou um quadro de honra ao mérito por ter sido um grande exemplo de comportamento adequado para todos os demais criminosos da cadeia. Por um lado, este quadro é um orgulho, mas a pessoa não gostaria de pendurar este quadro em sua sala, pois esta honraria demonstra que um dia ele foi criminoso… Assim também no caso do báal teshuvá, mesmo quando seu passado é nítido justamente pelas características boas e positivas que obteve no seu perfil, o próprio fato do pecado continuar nítido é um fato extremamente negativo do ponto de vista espiritual, pois demonstra que uma vez este indivíduo contradisse as ordens do Rei dos Reis.
É aí que entra o papel do “próprio dia” de Yom Kipur. A especialidade deste dia é o nascimento de um novo homem do ponto de vista espiritual. Assim como Rosh Hashaná é o dia do nascimento do homem (Adam Harishon) do ponto de vista material, Yom Kipur é o dia de nascimento espiritual, conforme trouxemos acima nas palavras do midrash: “Disse D’us a Israel: Façam teshuvá nestes dez dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur e Eu os declararei inocentes em Yom Kipur e os recriarei como novas criaturas, conforme está escrito: ‘D’us fez o firmamento’”. Ou seja, Yom Kipur está ligado justamente à criação do céu (firmamento – que representa a espiritualidade) e não da terra. Assim, é verdade que a personalidade do báal teshuvá é resultado de situações ingratas no passado. Mesmo assim, uma vez que ele renasce em Yom Kipur, o pecado já não “clama” de dentro de sua personalidade, pois o dia de Yom Kipur faz com que ele seja considerado como se tivesse nascido novamente com esta personalidade. Ou seja: embora não dê para apagar a influência do pecado no plano da realidade física da personalidade, do ponto de vista espiritual há aqui uma nova criação e, por conseguinte, nas orações de Yom Kipur recitamos os versículos: “Apagarei como uma nuvem seus pecados”, e “Eu sou Quem apaga seus pecados por Mim e seus pecados não lembrarei”. Tudo isso faz parte da força de Yom Kipur, no qual foram dadas as segundas Tábuas da Lei. D’us não “colou” os cacos das primeiras tábuas deixando as “cicatrizes”, mas sim entregou tábuas novas, que foram merecidas pela teshuvá, jejum e orações do Povo de Israel e de Moshê depois do pecado do bezerro de ouro. Quando se olhava para as segundas tábuas, não se via sinal algum do pecado – embora, na realidade, estas tábuas só existissem devido ao pecado do bezerro de ouro – e era possível aproveitar as vantagens especiais delas (o fato de serem fruto do esforço humano, etc.) sem que isso fosse uma lembrança do pecado.
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Renascença espiritual no Mundo Vindouro
Mencionemos aqui as palavras maravilhosas escritas pelo Gaon Rabí Yitschak Aizek Chaver zt”l (aluno do Rabí Menachem Mendel de Shklov, que era aluno do Gaon de Vilna) no darush de Shabat Teshuvá:
“Por isso, assim como no mundo vindouro do sétimo milênio disseram que não haverá comida nem bebida etc., somente os tsadikim sentados e aproveitando do brilho da Shechiná – assim também Yom Kipur tem uma parte daquela mesma luz. É por isso que nele também não há comida, bebida e assim por diante e todos os membros do povo de Israel são como os anjos, limpos e puros, conforme escrito no midrash: o Satan diz a D’us: ‘Em Yom Kipur o Senhor tem um povo… que é como os anjos…’ e Rosh Hashaná é o dia da criação do primeiro homem”.
Estas palavras expressam bem o que foi explicado a cima: Rosh Hashaná é o dia do início da criação do mundo físico atual, enquanto Yom Kipur está num nível mais elevado: a renovação da criação para um estado espiritual, o renascimento da coletividade e do indivíduo no sentido não material, no nível de “D’us fez o firmamento”.
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A beleza e o negrume
Agora é possível entender as palavras de nossos sábios no Midrash Shir Hashirim Rabá que mencionamos no começo deste capitulo: “‘Sou negra e bela’… Sou negra todos os dias do ano e bela em Yom Kipur…”. Ou seja: o Povo de Israel, mesmo depois de fazer teshuvá em Yom Kipur, ainda continua “negro”, pois esta é a personalidade que adquiriu devido aos pecados. Entretanto, com o potencial de Yom Kipur, este negrume é “belo”, pois é possível ver somente as vantagens e a beleza desta personalidade – sem lembrar de onde ela veio.
Seguindo este mesmo caminho, é isto também o que vai acontecer no mundo vindouro: de fato, a natureza do mundo vindouro será resultado direto dos atos dos seres humanos neste mundo. Contudo, no mundo vindouro não haverá nenhuma feiura ou recordação do pecado, uma vez que o mundo vindouro é a renovação do mundo. É como se fosse o renascimento de todos os seres da terra. “Naqueles dias, naquele momento, assim diz D’us, será procurado o pecado de Israel e eis que ele não se encontra; os pecados de Yehudá (ou seja dos judeus) e não serão encontrados, pois perdoarei a quem Eu deixar” (Yirmiyáhu 50:20). Por tanto, no final do Midrash citado acima, consta tambem: “Sou negra neste mundo e bela no mundo vindouro”.
Por isso, Yom Kipur é paralelo à Akedat Yitschak. Afinal, D’us considerou como se Yitschak tivesse sido sacrificado na prática, de maneira que Yitschak “renasceu” do ponto de vista espiritual. A partir disso é compreensível o que está escrito em Shabat 89b que a redenção final (que é o início da criação do “Mundo Vindouro”) será em mérito de Yitschak, por ter sido trazido como oferenda.
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Voltando à parábola sobre a alegria do lixo
Agora conseguimos entender uma gotinha da profundidade da parábola de nossos sábios no Taná Devê Eliyáhu citado acima; de fato, mesmo quando os filhos de Israel fazem teshuvá e “retiram os lixos” do palácio do rei, eles “os jogam em frente à porta do Rei”, pois a realidade do pecado ainda se encontra lá, nítida perante o Rei dos Rei, já que na própria personalidade do báal teshuvá ficam as “pistas do crime”. Mesmo assim, a força da inovação de Yom Kipur é que D’us Se alegra com isso; olha para o lixo e Se alegra com ele, ou seja: olha somente para os bons resultados da situação atual – o “nível em que se encontram os baalê teshuvá”, o fato positivo do báal teshuvá ser mais resistente a pecados, mais humilde e demais vantagens. Poderíamos pensar que o perdão pelos pecados vem acompanhado de tristeza, uma vez que a nova personalidade está baseada no pecado, como no caso do quadro de honra por bom comportamento na prisão. Por isso, nossos sábios vêm nos ensinar que pelo contrário, D’us fica extremamente feliz, sem tristeza nenhuma. Esta é a bondade Divina e um maravilhoso presente que Ele nos dá em Yom Kipur: considera-nos uma nova criatura de forma que pode olhar somente para a parte boa e ignorar a origem negativa daquele “bem”. Por exemplo: D’us observa a humildade do báal teshuvá (conforme escreve o Rambam) sem levar em conta o motivo pelo qual o báal teshuvá adquiriu esta humildade (– o pecado).
Isso com certeza requer que nós também saibamos agir de forma semelhante a como Ele atua conosco, sabendo reconhecer e observar todos os bens que Ele nos faz todos os dias: “Por isso, a pessoa deve lembrar [toda a história] desde o dia em que D’us escolheu Avraham até aquele momento, e todas as bondades e justiças que D’us fez com Israel a cada momento”. Se D’us nos observa de forma tão positiva, a ponto de se alegrar em ver os resultados de nossos pecados, o mínimo que devemos fazer é observar e lembrar as enormes bondades e justiças que Ele fez e faz conosco.