Capítulo 5

O Próprio Dia

 

 

E o próprio dia de Yom Kipur expia para aqueles que retornam, como foi dito: “Pois neste dia expiará por vocês

(Rambam, Leis de Teshuvá 1:3)

 

No tratado de Yomá 85b, os sábios discutem com Rabí Yehudá Hanassí (chamado de “Rabí”) se o próprio dia de Yom Kipur expia com teshuvá ou até mesmo sem teshuvá. A halachá é conforme a maioria: é preciso de teshuvá. Contudo, mesmo de acordo com os sábios, existe uma força especial que se encontra “no próprio dia em si” (itsumô shel yom) de Yom Kipur; afinal, somente teshuvá – sem passar por Yom Kipur – não tem poder de expiar pela transgressão de mitsvot lô taassê (preceitos negativos – literalmente: mitsvot “não faça”), conforme explicado no Tratado de Yomá 86a e no Rambam. É preciso analisar qual é esta força especial que não depende dos atos do homem – afinal, não é somente o jejum e os demais sofrimentos que expiam, mas sim “o próprio dia em si”. Como é que o próprio dia de Yom Kipur pode expiar algo que nem mesmo a teshuvá tem força de apagar? E, quanto mais, a opinião de Rabí precisa de explicação: como pode ser que Yom Kipur expiará os pecados mesmo sem teshuvá? Afinal, sabemos que D’us não “abre mão” de nenhum pecado, ao ponto que dizem nossos Sábios no Tratado de Babá Kamá: todo aquele que diz “D’us abre mão dos pecados” abrem mão de sua vida, D’us nos livre.

De fato, há alguns midrashím sobre a expiação especial de Yom Kipur que exigem aprofundamento:

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Criança Pequena

No midrash Yalkut Shimoni está escrito:

“Rabi Azaryá diz em nome de Rabí Yehudá: No futuro, virão todos os ministros (anjos encarregados pelos povos) idólatras para falarem mal do Povo de Israel perante D’us e dirão: ‘Mestre do Universo! Estes são idólatras e aqueles são idólatras. Estes têm relações ilícitas e derramam sangue e aqueles têm relações ilícitas e derramam sangue. Por que estes descem ao Guehinam (inferno) e aqueles não? Por acaso existe parcialidade perante o Senhor?’ Responde-lhes D’us: ‘“Se um homem der toda a fortuna de sua casa pelo amor, será desprezado”. (Cântico dos Cânticos 8:7). Se vocês derem todo o seu dinheiro por uma só coisa da Torá, não serão expiados. O que está escrito logo depois (no Cântico dos Cânticos)? “Temos uma irmã pequena”. Assim como apesar de tudo que uma criança muito pequena faz ninguém lhe chama a atenção, da mesma forma tudo o que o Povo de Israel estraga com pecados o ano inteiro – vem Yom Kipur e expia por eles, conforme dito: “Pois neste dia expiará por vocês”’”.

Este midrash desperta muitas questões:

1. As nações do mundo reclamam perante o Rei da Justiça: “Por acaso existe parcialidade perante o Senhor?” A resposta que recebem de D’us não só deixa de ser satisfatória como ainda fortalece muito mais sua reivindicação: por que D’us não está disposto a expiar as nações do mundo mesmo que derem toda a fortuna que têm em sua casa, enquanto que aos filhos de Israel Ele expia (com o Yom Kipur)?

2. Mais difícil ainda é entender por que D’us considera nosso povo uma criança, se ele é dotado de intelecto?

3. Isto sem falar que esta consideração (de sermos como crianças) parece contradizer versículos explícitos, que temos que prestar contas por todos os pecados, e não como uma criança. “Todo ato trará D’us ao julgamento, tudo que esteja oculto, seja bom ou ruim” .

4. E mais: parece que o midrash contradiz a si mesmo sobre o motivo pelo qual o Povo de Israel não é punido descendo ao Guehinam: Inicialmente diz o midrash que é por ser considerado ainda uma criança muito pequena que pode fazer o que quiser, sem que lhe chamem a atenção; porem, na continuação da mesma frase no midrash, afirma-nos o midrash que o motivo pelo qual o Povo de Israel é poupado é pois vem Yom Kipur e expia por eles. Sendo assim, o fato do Povo de Israel deixar de descer ao Guehinam é por causa de Yom Kipur e não?

Antes de responder estas questões, deveremos observar ainda outros dois midrashim.

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Questão de cabelo

Outro midrash sobre um assunto similar também exige compreensão: O midrash diz sobre o versículo “Afinal Essav, meu irmão, é um homem peludo enquanto eu [Yaacov] sou um homem liso” (Bereshit 27:11) o seguinte:

“Rabi Levi diz: imaginem um cabeludo e um careca que estavam perto do celeiro. A palha veio sobre o cabeludo e emaranhou-se em seus cabelos. A palha veio sobre o careca, este passou a mão sobre a cabeça e a tirou. Da mesma forma, Essav, o perverso, suja-se de pecados durante todo o ano e não tem com que expiar. Já Yaacov suja-se de pecados durante todos os dias do ano, chega Yom Kipur e ele tem com que expiar, conforme escrito: ‘Pois neste dia expiará por vocês’”.

Aqui também encontramos a ênfase de nossos sábios na diferença crucial entre o Povo de Israel e as demais nações quanto à expiação de Yom Kipur. Só que aqui a comparação é explicada com o exemplo de um cabeludo e um careca. No que este exemplo ajuda a entender a diferença? E mais: será que o que foi dito aqui é paralelo ao Yalkut Shimoni acima, segundo o qual a diferença entre Israel e os povos é que Israel é uma “criança”? Ou será que este midrash está trazendo outro motivo, de forma que há uma contradição entre os midrashim?

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Adriblada” de D’us contra o Satan

Chegando ao auge do espanto, o Pesikta Rabati (45) traz um midrash realmente surpreendente:

“Em Yom Kipur, o Satan vem acusar o Povo de Israel. Detalha seus pecados e diz: ‘Mestre do Universo! Há adúlteros entre as nações do mundo e há também em Israel. Há ladrões entre as nações do mundo e há em Israel’. D’us detalha os méritos de Israel. O que faz Ele? Pega uma balança e coloca os pecados de um lado e os méritos do outro. A balança fica exatamente equilibrada. O Satan vai pegar mais pecados para colocar no prato e fazer a balança pender. O que faz D’us? Até o Satan retornar, D’us tira os pecados do prato e os esconde debaixo de Sua roupa real. O Satan chega e não encontra ali nenhum pecado, como foi dito: “Buscarão a iniquidade de Israel, mas ela não estará lá”. Quando o Satan vê isso, diz: ‘Mestre do Universo! Perdoaste o pecado de Teu povo?’ Quando David viu como D’us perdoa seus pecados e os encobre, começou a louvá-los: ‘Bem-aventurado é aquele cuja transgressão é perdoada e seu pecado é ocultado’”.

Há alguns pontos neste midrash que exigem atenção:

1. Entende-se do midrash que este episódio acontece todo ano novamente, no dia de Yom Kipur. Como pode ser que, todo ano, o Povo de Israel tem exatamente a mesma quantidade de méritos e pecados, de forma que a balança está sempre equilibrada?

2. Se havia outros pecados que o Satan podia trazer, porque não os trouxe antes?

3. O que significa que o Satan “vai embora” e entrementes não vê o que está ocorrendo? Afinal, nosso Sábios dizem que o Satan é o próprio Yêtser Hará (instinto do mal), o que significa que o Satan atua o tempo todo em vários lugares simultaneamente, não tendo limitação física de estar somente em um lugar?

4. Nossos sábios disseram: “Todo aquele que diz que D’us abre mão dos pecados, abrem mão de sua vida” . Sendo assim, como é possível que D’us esconde os pecados de Israel? E se o motivo é a expiação de Yom Kipur (afinal, o midrash diz que isso ocorre em Yom Kipur), porque esta expiação é definida como “ocultamento”?

5. Por que D’us espera o Satan sair para retirar os pecados da balança? Afinal, D’us é onipotente e ninguém pode Lhe dizer o que fazer. Se o motivo fosse as regras que D’us criou – sendo preciso um acusador, justiça e assim por diante – por que D’us faz uma espécie de “truque” para burlar a própria lei? Mais ainda: o “truque” não esconde nada do Satan, que percebe tudo quando retorna. Para que fazê-lo, então?

6. O midrash citado diz que, devido ao episódio citado, David Hamêlech “começou a louvá-los, ou seja louva o povo de Israel por terem seus pecados perdoados. Por que David louva a Israel? Ele deveria louvar a D’us que com Sua grande Misericórdia perdoou ao povo!

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Entrando em seu próprio íntimo

Para responder a todas estas questões, precisamos de algumas introduções:

Yom Kipur é o único dia do ano em que o Cohen Gadol tem permissão de entrar no Kodesh Hakodashim, o santo dos santos, o recinto mais interno e sagrado do Templo. O Rav Chaim de Volozhin explica, baseado no Zôhar, que o homem (e sua alma) é construído no molde do Templo e seus utensílios. Cada membro do corpo e da alma do ser humano é paralelo a uma parte do Templo. Já escreve o Alshech sobre o versículo “Façam-me um Templo e morarei dentro deles” – que o próprio homem é como um Templo para D’us. A partir disso concluímos que, uma vez por ano, em Yom Kipur, o ser humano é capaz de entrar no recinto mais interno de si mesmo e encontrar as partes mais íntimas e elevadas de sua alma. De fato, está escrito nos livros sagrados que, no dia de Yom Kipur, no momento da Neilá (a última prece do dia, perto do pôr do Sol), revela-se a luz da parte mais elevada da alma, a chamada yechidá, que é o quinto nível da alma – algo que, durante o resto dos dias do ano, é muito distante do ser humano. Mesmo o homem mais santo, durante os demais dias do ano, só tem os três primeiros níveis da alma brilhando, e eis que em Yom Kipur, todo judeu simples pode alcançar um pouco da luz do quinto nível. Assim, em Yom Kipur, o judeu liga-se às suas raízes mais elevadas que chegam até o Trono da Glória, parte de D’us.

Quando o judeu chega a um nível tão profundo, perde automaticamente sua ligação com o conceito de pecado e transgressão. Nossos sábios de fato dizem que, em Yom Kipur, estamos livres da má inclinação.

Afinal, toda a realidade de pecado é como que “externa a realidade verdadeira do judeu, como se expressam nossos Sábios:um homem não peca, a não ser que passe por ele um estado de estupidez” (Tratado de Sotá 3a). A prova clássica deste conceito, é a lei do divórcio forçado. Em casos espéciais nos quais um marido tem a obrigação pela lei judaica de divorciar a sua esposa, e ele se recusa a faze-lo, o tribunal rabínico pode bater nele até ele dizer “Eu quero dar o divórcio”. Mesmo que um divórcio contra a vontade do marido não seja valido, neste caso é considerado que divorciou com vontade plena, pelo motivo que explica o Rambam: “já que ele deseja ser parte de Israel, ele quer cumprir todas as mitsvot e se afastar de todos os pecados. Somente seu mau instinto o atacou. Uma vez que batem nele até seu mau instinto enfraquecer e ele dizer ‘eu quero’, já é considerado que ele se divorciou por livre e espontânea vontade”. Ou seja: a parte interna do judeu é totalmente permeada pela vontade de D’us. Assim, quem teve o mérito de se ligar à parte mais profunda que tem dentro de si – entrar em seu próprio Kodesh Hakodashim, debaixo do Trono da Glória – está totalmente fora da realidade de pecado. Desta forma, toda a má influência das transgressões e o embrutecimento que elas acarretam desaparecem.

De acordo com Rabí Yehudá Hanassí (citado no começo deste capitulo), isso é tão correto que até mesmo sem teshuvá, o próprio fato de a pessoa ter conseguido se ligar ao seu “eu” interno e à sua raiz elevada já é suficiente para retirar totalmente a pessoa do conceito de pecado, que é um assunto externo. De acordo com os outros sábios, isso não é suficiente e o próprio pecado exige teshuvá. O embrutecimento espiritual que advém do pecado desaparece no momento em que a pessoa se liga ao seu nível mais interno a partir de uma teshuvá que vem de sua parte mais profunda.

Agora vemos quão exatas são as palavras de Rabí Akivá ao dizer sua frase famosa em relação ao Yom Kipur: “Perante quem vocês se purificam e Quem os purifica? Seu Pai Celestial… Como está escrito ‘o Mikvê de Israel é D’us’. Por um lado, os membros de Israel são aqueles que se purificam, uma vez que a purificação vem quando a pessoa se conecta ao seu “eu” mais interno. Por outro lado, quem realmente os purifica é D’us, pois é Ele que nos conecta ao nosso “eu” interno que é a centelha Divina que temos dentro de nós, sendo que toda esta pureza vem da santidade Dele. Por isso Rabí Akivá usou a expressão “Israel” (que é a expressão do nível mais alto do Povo Santo), assim como a expressão “Pai Celestial” (que enfatiza o fato de D’us ser muito elevado e ser nosso Pai, pois Dele fomos criados). A pureza é como “o Mikvê de Israel é D’us” – pois assim como o mikvê (o banho ritual) purifica quando a pessoa entra em contato direto com suas águas, D’us purifica quando a pessoa entra em contato com sua centelha Divina.

Esta é a explicação do motivo pelo qual o Povo de Israel não come e não bebe (e anda descalço) em Yom Kipur como os anjos e ainda recita “Baruch Shem Kevod Malchutô etc” em voz alta como os anjos. Uma vez que merecem a revelação do “eu” interior de suas almas, tornam-se realmente como anjos, pois o verdadeiro “eu” do judeu é ainda mais elevado que o nível dos anjos, conforme trazido pelo livro Nefesh Hachayim.

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Finalmente, as respostas

À luz de tudo o que foi dito, é possível entender o midrash do Yalkut Shimoni (citado anteriormente) que traz a reclamação dos ministros (anjos) dos povos: por que o Povo de Israel tem seus pecados expiados em Yom Kipur e eles não? Questionamos anteriormente, que a resposta de D’us, segundo a qual o Povo de Israel é considerado uma criança, só agrava a questão dos anjos dos povos. Além disso, é difícil essa definição do povo como criança. E mais: se ele é de fato uma criança, por que a expiação vem justamente por intermédio de Yom Kipur?

Agora compreendemos que há uma diferença crucial entre Israel e as demais nações: para o Povo de Israel, os pecados são algo totalmente externo. Por isso, em Yom Kipur, quando o interior do judeu fica mais forte e se revela, como o Kodesh Hakodashim, ele perde a ligação com o pecado. É como uma criança que, quando peca, o pecado não é algo essencial nem vem de maldade. Trata-se somente de leviandade e alguma besteira que lhe veio à cabeça devido à tenra idade. É por isso que não se chama a atenção de uma criança muito pequena quando faz algo errado. Já os demais povos não são assim. O pecado faz parte de sua essência e não é somente externo. Por isso, Yom Kipur não lhes serve para nada.

Seguindo este caminho, a comparação citada no Midrash Bereshit Rabá (que mencionamos anteriormente) sobre o careca e o cabeludo é extremamente exata: para o Povo de Israel, o pecado é algo totalmente externo e, por isso, basta fazer uma separação entre ele e o pecado (“..a palha veio sobre o careca, este passou a mão sobre a cabeça e a tirou”). Já em relação às demais nações, o pecado fica arraigado dentro delas e não há como retirá-lo. (“..a palha veio sobre o cabeludo e emaranhou-se em seus cabelos”).

Agora também se esclarece o midrash do Pesikta Rabatí trazido acima, que quando o Satan sai para buscar mais pecados, D’us esconde todos os outros. Em primeiro lugar, o midrash enfatiza que a primeira acusação do Satan não é contra Israel, mas contra as demais nações: “Mestre do Universo! Há adúlteros entre as nações do mundo e há também em Israel. Há ladrões entre as nações do mundo e há em Israel”. Ou seja: a acusação tem início com uma perspectiva superficial. Superficialmente, não parece haver diferença alguma entre Israel e as demais nações, de forma que a acusação é pior ainda, pois parece que o Povo Santo não é diferente das mais baixas entre as nações. Uma vez que o julgamento (por enquanto) se encontra num nível superficial, D’us também traz os méritos de Israel de forma superficial. Já que a perspectiva não é profunda, um julgamento destes não reflete o verdadeiro status de Israel, sendo que por isto ambos os pratos da balança se encontram equilibrados. O midrash usa justamente a palavra “meuyan” para “equilibrado” em vez de “meuzan”, porque o radical é da palavra “oyen”, inimigo. É como se os pratos estivessem “brigando” entre si, ou seja: trata-se de uma situação que não está clara, cujo veredito ainda não está definido.

Por isso, agora, é preciso aprofundar o julgamento. O Satan abandona o nível superficial e vai se aprofundando na raiz dos atos de Israel, tentando encontrar em seu interior alguma mácula para, desta forma, levar o julgamento a uma decisão. Uma vez que o julgamento passa para um nível mais profundo, os pecados de Israel ficam “ocultos”, já não é possível vê-los, pois são somente externos. Quando o lado profundo de Israel é revelado (o que é possível justamente pela força especial do dia de Yom Kipur), fica claro que os pecados não estão “agarrados”. É esta a definição do fato de que “o próprio dia” de Yom Kipur expia os pecados.

A partir daí é fácil de entender por que David Hamelech louva o Povo de Israel pelo fato de que D’us “esconde” seus pecados: esse ocultamento resulta da força interna verdadeira do Povo de Israel, que realmente é digna de honraria.

 

 

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