Yamim Ben Hametsarím
Capítulo 13
Kamtsa e Bar Kamtsa
“Devido a Kamtsa e Bar Kamtsa foi destruída Jerusalém”.
(Guitin 55b)
A história de Kamtsa e Bar Kamtsa é famosa, e envolve conceitos profundos. Antes de analisa-la devidamente, vamos “reavivar” a memória trazendo aqui a historia, como consta no Tratado de Guitin 55b:
“Devido a Kamtsa e Bar Kamtsa foi destruída Jerusalém: Existia um homem que tinha um amigo chamado Kamtsa e um inimigo chamado Bar Kamtsa. Este homem deu uma festa e mandou seu servente convidar Kamtsa. O servente foi e trouxe Bar Kamtsa. O anfitrião viu que Bar Kamtsa estava sentado em sua refeição e disse:
“– Acaso você é o dono desta casa? O que está fazendo aqui? Levante-se e saia!
“– Se já estou aqui – retrucou Bar Kamtsa – deixe-me e pagarei por tudo o que comer.
“– Não.
“– Pagarei metade de sua festa.
“– Não.
“– Pagarei por toda a festa!
“– Não!
“O dono da festa pegou-o à força e o expulsou.
“Disse Bar Kamtsa: ‘Como havia sábios de Torá presentes nesta refeição e não admoestaram o anfitrião, é sinal que concordam com o ato. Vou ir e caluniá-los no palácio do rei’. Foi até o César e disse:
“– Os judeus rebelaram-se contra você.
“– Quem disse? – replicou o César.
“– Mande-lhes uma oferenda – propôs Bar Kamtsa – e verá como não a oferecerão em seu Templo.
“O César enviou um bezerro “caprichado[1]”. No caminho, Bar Kamtsa fez um pequeno defeito nos lábios do animal. Outros dizem: nos olhos. [Sendo que o defeito foi feito] num local onde, para nós, é considerado defeito e para as outras nações [que não ligam tanto para a perfeição do animal sacrificado a seus deuses], não. Os sábios queriam sacrificá-la para ficar em paz com o rei. Disse-lhes Rabí Zecharyá ben Avculas:
“– [Se aceitarmos sacrifica-los, há o receio que pessoas do povo] vão pensar que é permitido sacrificar animais defeituosos no Altar!
“Quiseram matar Bar Kamtsa, para que ele não fosse contar ao rei. Disse-lhes Rabí Zecharyá:
“– [Se agirmos assim há o receio que pessoas do povo] vão pensar que aquele que faz um defeito num animal dedicado ao Templo deve ser morto! [Consequentemente, não se tomou atitude nenhuma, e ficou provado para o César que os judeus realmente se rebelaram, e disto começou a guerra que levou à destruição do Templo].
“Sobre isso disse Rabí Yochanan: ‘A humildade de Rabí Zecharyá ben Avculas destruiu nossa Casa, queimou nosso Templo e nos exilou de nossa terra’”
*
Analisando a história
Há alguns pontos a serem esclarecidos tanto na história propriamente dita como na referência de nossos sábios a ela.
1) Os Acharoním questionam a linguagem de nossos sábios: “Devido a Kamtsa e Bar Kamtsa foi destruída Jerusalém”. É verdade que Bar Kamtsa é culpado pela destruição de Jerusalém, uma vez que caluniou os judeus perante César, mas Kamtsa nada fez (Kamtsa é apenas a pessoa que deveria ter sido convidada para a festa). Parece que essa pergunta não tem lugar, uma vez que a continuação da Beraitá é a seguinte: “Devido a uma galinha e um galo foi destruída Tur Malka” [2]. É óbvio que os galos não tinham culpa alguma. Realmente, analisando o dito de nossos sábios literalmente, podemos dizer que a intenção da Beraitá é que, a semelhança entre os nomes “Kamtsa” e “Bar Kamtsa” foi o que causou a destruição. No entanto, no midrash[3] está escrito o seguinte: “Entre Kamtsa e Ben Kamtsa foi destruído o Templo”. Parece desta linguagem que a diferença (e não a semelhança) entre os dois nomes é o que causou a destruição do Templo. Como é possível que a diferença entre os nomes causou a destruição, e não a semelhança?
Mais ainda: por que nossos sábios usam expressões como se a semelhança ou diferença entre os nomes Kamtsa e Bar Kamtsa causaram a destruição, quando na verdade isto é, aparentemente, um ponto irrelevante?
2) Citamos anteriormente as palavras de Rabí Yochanan: “a humildade de Rabí Zecharyá ben Avculas destruiu nossa Casa, queimou nosso Templo e exilou-nos de nossa terra”. Que humildade houve nessa história? Rashí, de fato, sente dificuldade nisso e explica: “Sua humildade – sua tolerância, por ter tolerado e não o matado”. Se é assim, por que nossos sábios, sempre tão exatos, usaram a palavra “humildade” em vez de dizerem claramente “tolerância”?
De fato, o midrash Echá Rabá, à priori, parece explicar de forma diferente: Rabí Zecharya ben Avculas também estava presente na refeição e não chamou a atenção do proprietário da festa quando este desprezou Bar Kamtsa. Rabí Zecharya nada disse por ser humilde e achar que não era digno de chamar a atenção dos outros ou achar que não ouviriam o que ele dissesse. Porem, seguindo as palavras do Talmud que trouxemos acima, parece que a linha do Talmud é conforme a interpretação de Rashí: a crítica de Rabí Yochanan é referente à postura de Rabí Zecharyá em relação à execução de Bar Kamtsa, uma vez que sequer é lembrado que Rabí Zecharyá estava presente na refeição. Como podemos conciliar o que conta o Talmud, e o que conta o Midrash?
3) A expressão de Rabí Yochanan condenando a humildade de Rabí Zecharyá é estranha. Afinal, a virtude da humildade é algo positivo. Como é que de algo bom saiu um erro tão grave que destruiu nossa Casa, queimou nosso Templo e exilou-nos de nossa terra?
4) É difícil de entender Rabí Yochanan, que jogou toda a responsabilidade pela destruição e pelo exílio sobre Rabí Zecharyá. Pelo que sabemos do Tratado de Yomá[4] – a destruição e o exilio são um decreto Celestial devido aos pecados do Povo de Israel (o ódio sem motivo).
5) O Maharal de Praga, em seu livro Nêtsach Israel, analisa os nomes Kamtsa e Bar Kamtsa e explica que se trata de nomes descritivos. De fato, Flávio Josefo traz que os nomes Kamtsa e Bar Kamtsa eram apelidos dados pelos nossos sábios, mas não os nomes verdadeiros. Na verdade, tanto Kamtsa como Bar Kamtsa chamavam-se Campsus, mas Bar Kamtsa era também filho de um homem chamado Campsus, conforme a cultura romana, na qual o pai dava ao filho seu próprio nome. Ou seja o amigo do anfitrião chamava Campsus, e o inimigo chamava Campsus Bar Campsus (em aramaico “Bar” significa “filho” ou “filho de”)[5]. Assim concluímos que, quando nossos sábios chamaram-no de Bar Kamtsa, há um significado por trás disto. Por que nossos sábios não chamaram ambos de Campsus? E por que um deles é chamado meramente de Bar Kamtsa?
6) Na continuação do trecho Talmúdico citado cima[6], relata a Guemará sobre a destruição de Tur Malka (o monte do rei) e da cidade de Betar, pelos romanos, após a destruição de Jerusalém. A Guemará conta ainda que os moradores destas duas localidades eram pessoa justas, e, posteriormente, comenta sobre isto:
“Disse Abayê a Rav Yossef: ‘Se todos eles [habitantes de Tur Malka e Beitar] eram tão justos, por que foram castigados?’ Respondeu-lhe: ‘Porque não ficaram enlutados pela destruição de Jerusalém’”
É preciso compreender esta afirmação. Não trata-se de mera destruição dos lares nestas localidades, trata-se do assassinato de seus habitantes. Acaso quem não se enluta pelo Templo merece a morte?
7) Também devemos analisar o famoso trecho da guemará no Tratado de Yomá 9b:
“Já no segundo Templo, quando se ocupavam de Torá, mitsvot e bondade, por que foi destruído? Porque havia ódio sem motivo”.
Um dos mestres do mussar, conhecido com o apelido carinhoso de “O avô de Kêlem”, pergunta[7]: já que eram grandes justos que se ocupavam de Torá, mitsvot e bondade, a destruição do Templo e o quarto exílio parecem um castigo exagerado. Afinal, o quarto exílio engloba 2000 anos de sofrimentos!?
Especifiquemos mais a pergunta: de acordo com o Rambam, só se transgride a proibição de “não odeie seu amigo em seu coração” [8] quando se esconde o ódio. Já na história de Kamtsa e Bar Kamtsa parece que não escondiam seu ódio. Assim, eles não estavam transgredindo nada. No máximo estavam deixando de cumprir o preceito positivo de “Ame seu próximo como a si mesmo”[9], e mesmo isto não transgrediram de forma absoluta, porque a guemará atesta que eles praticavam bondade. Portanto, se acentua a questão: Por que uma punição tão grave para esta transgressão?
E mais, a Guemará em Yomá conclui:
“Daqui aprendemos que o ódio sem motivo tem o mesmo peso que os pecados de idolatria, assassinato e relações proibidas”.
Por que o castigo (destruição do segundo Templo) por ódio sem motivo (que é no máximo uma proibição) é igual ao castigo (destruição do primeiro Templo) pelos três pecados mais graves da Torá cuja lei é: seja morto mas não transgrida?
*
A Raiz do Quarto Exílio
Para entender tudo isso, é preciso analisar primeiramente a raiz do quarto exílio: a luta entre Yaacov e Essav.
A Torá[10] relata que Yitschak abençoou a Essav dizendo o seguinte: “Vehayá caasher tarid, ufaraktá ulo meal tsavarecha – quando tiveres pelo que queixar-te, lançarás fora o jugo [de Yaacov] do teu pescoço”. O midrash[11] explica esta bênção da seguinte forma:
“Yitschak disse a Essav: você tem feiras comerciais (em hebraico: yeridím) e ele (Yaacov) tem feiras comerciais. Você tem regras de etiqueta e ele tem regras de etiqueta. Se você perceber que seu irmão Yaacov está retirando de si o jugo da Torá, faça decretos contra ele e domine-o”.
O que este midrash quer dizer? O que tem a ver o fato de existirem feiras comerciais e regras de etiqueta com a continuação do midrash? Qual é a ligação de tudo isso com a berachá “Vehayá caasher tarid”?
Sabemos que a luta de Yaacov e Essav pela bênção do pai concentrava-se no seguinte tópico: qual dos dois dominaria o mundo. A principal parte da bênção de Yitschak a Yaacov, a qual ele não poderia repetir a Essav, era: “Nações te servirão, governos se inclinarão a ti. Tu serás como um senhor sobre teu irmão; os filhos de tua mãe se prostrarão perante ti” [12]. Foi sobre esta bênção que Yitschak disse a Essav: “Mas eu o fiz [a Yaacov] como um senhor sobre ti. Eu lhe dei todos os seus irmãos como escravos. Eu o associei ao grão e ao vinho. Assim, o que posso fazer por ti, meu filho?”
Depois de Essav insistir, Yitschak encontrou uma forma de dividir o poder com Essav também: “Tu servirás teu irmão, mas quando tiveres pelo que queixar-te [do comportamento espiritual de Yaakov – assim explica Rashí[13]], lançarás fora o jugo [de Yaacov] do teu pescoço”. Os seja quando Yaacov não estudar Torá e cumprir mitsvot devidamente, o reinado passa para Essav. Conforme dizem nossos sábios[14]: “Enquanto a voz de Yaacov é ouvida nas sinagogas e nas casas de estudo, as mãos não são de Essav; quando sua voz não reverbera nas sinagogas e nas casas de estudo, as mãos são de Essav”.
A luta entre Essav e Yaacov pelo poder sobre o mundo não se resume a um interesse material; trata-se de uma guerra pelo reinado de D’us no mundo. O Ramchal explica que quando pedimos, em Rosh Hashaná, “Dá honra ao Teu povo e glória àqueles que Te temem”, não estamos pedindo por nós. Uma vez que o Povo de Israel é o representante do serviço a D’us no mundo, quanto mais se elevar acima dos outros povos, maior será a honra de D’us no mundo. Assim, o pedido de honra pelo povo é parte do pedido pelo reinado de D’us no mundo, que é o assunto de toda a oração de Rosh Hashaná.
Por isso, é possível abençoar tanto Yaacov como Essav com orvalho e abundância do produto agrícola; não há conflito material entre eles e ambos podem ter fartura e bênção. O principal ponto da luta é quem será mais poderoso, pois esta é a luta pela honra de D’us.
Agora é possível compreender a profundidade do midrash citado acima, sobre as feiras comerciais e as regras de etiqueta, e o que isto tem a ver com a frase final do midrash em questão: Yitschak explicou que tanto Yaacov como Essav dispõem de todas as melhores condições materiais e ambos têm potencial para controlarem o mundo (e assim também seus respectivos descendentes). Ambos, tanto o povo judeu quanto os povos europeus “têm feiras comerciais”, ou seja economia desenvolvida e influência monetária; ambos têm “regras de etiqueta” ou seja características de personalidade que demonstram serem líderes (É sabido que os filhos de Essav, mesmo quando são cruéis assassinos, são dotados de mais nobreza e realeza que outras nações). Assim, quem governará? Isso depende do nível espiritual. Se Yaacov (ou seja o povo judeu) se encontra num nível espiritual elevado, governará. Caso contrário, Essav (ou seja o povo europeu) fará decretos contra ele e o dominará (destruição do Templo, inquisição, pogroms etc).
É por isso que, quando Yaacov lutou com o anjo de Essav e o venceu, este disse: “Teu nome não será mais Yaacov, e sim Israel – pois lutaste para domínio (em hebraico: ki sarita, que é uma linguagem que implica em governar, reinar, dominar) com anjos e pessoas e venceste”[15]. A luta entre Yaacov e o anjo de Essav, que era o início da luta ao longo de todas as gerações, também foi pelo domínio.
Agora é possível entender o que o Zôhar escreve: o nome Israel (que é da linguagem serará – governo) tem um nível espiritual mais elevado que o nome Yaacov. De fato, o domínio sobre Essav (ou seja a serará) depende do nível espiritual alto, que é o que torna possível as bênçãos de Yitschak.
Agora, analisemos por que o pecado de “ódio sem motivo” levou à interrupção do governo de Israel e deu início justamente ao exílio de Edom, mesmo que a situação espiritual do povo de Israel estivesse elevadíssima, como atestam nossos sábios em Yomá: “Ocupavam-se de Torá, mitsvot e bondade”. Parece que o motivo é o seguinte: quando há ódio sem motivo entre os membros do povo de Israel, não existe mais “Israel”, mas um grande amontoado de indivíduos. Todo o conceito de poder e superioridade só pode estar ligado a uma nação: a nação de Israel pode ser superior às demais, mas cada indivíduo não tem como dominar o mundo todo. A falha do povo não estava ligada a pecados graves – como foi na época do primeiro Templo – mas ao fato de terem saído do estado de superioridade devido ao ódio sem motivo. Por isso, D’us os colocou justamente no exílio de Edom, cuja essência é o poder sobre Israel (superioridade). Afinal, o ódio de Edom contra Israel baseia-se precisamente na questão “quem dominará quem?”[16].
Agora também é possível entender por que Tur Malka e Beitar foram destruídas por seus habitantes não terem se enlutado pela destruição de Jerusalém. Como não sentiam nenhuma ligação com os habitantes de Jerusalém, foi como se outro povo tivesse sido destruído, enquanto eles continuavam sua própria rotina. Assim, eles também estavam separados do resto do povo e, por isso, foram subjugados por Edom.
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A disputa interna
Agora também é possível entender a “gota d’água” que levou ao exílio: Kamtsa e Bar Kamtsa. Neste episódio, ficou evidente não somente o ódio sem motivo, que leva à segregação do povo, mas algo muito pior: a luta pelo poder dentro do próprio povo. A briga entre o dono da festa e Bar Kamtsa não foi por motivos econômicos, pois Bar Kamtsa estava disposto a pagar toda a festa. A briga foi uma luta de egos, uma luta pela soberania. De fato, o midrash Eichá Rabá descreve que Bar Kamtsa fez questão de sentar-se à mesa principal, onde estavam todos os aristocratas, e a luta levou à humilhação de um judeu da pior forma possível. Quando há luta pelo poder dentro do povo, este chega ao extremo contrário de sua luta – como nação – pela soberania entre os demais povos do mundo. Justamente este ato fez com que D’us despertasse o desejo de Essav para vir e lutar contra Israel.
Por isso, a raiva de Essav acendeu-se quando não sacrificaram sua oferenda. Afinal, o motivo de Israel ser soberano mais do que os outros povos é para servirem como “or lagoim” – uma luz para o mundo, o paradigma do serviço a D’us. Se o Povo de Israel não está disposto a ajudar os povos a servirem a D’us, não está cumprindo seu dever e não merece a soberania[17]. Talvez este também seja o motivo de por que Bar Kamtsa fez um defeito justamente no lábio superior – safá. Safá, em hebraico, também pode aludir ao significado de “povo” (pois um povo se distingue por seu idioma), com dizemos na reza das festividades: Veromemanu micol lashon. O lábio superior representa o povo superior aos outros – o povo de Israel – que está com defeito. Se o “lábio superior” tem defeito, todo o complexo está invalidado e necessita de mudanças...
Entendendo Kamtsa
Agora podemos entender por que nossos sábios chamaram Campsus de Kamtsa. Kamtsa significa gafanhoto (vide Rashí em Pessachim 16a). Em que ocasião o gafanhoto foi usado para descrever um ser humano? Na história dos espiões enviados por Moshê, no deserto, para a Terra de Israel. Estes, ao retornarem, disseram que viram gigantes tão grandes que “parecíamos gafanhotos aos nossos olhos e assim parecemos aos olhos deles”. O gafanhoto está ligado à humilhação perante alguém mais poderoso e à luta pela soberania.
Também podemos entender por que nossos sábios disseram que a “diferença” entre o nome “Kamtsa” e “Bar Kamtsa” é o que levou à destruição do Templo. De acordo com o que nos revela o midrash (assim como Flávio Josefo), Bar Kamtsa também se chamava Kamtsa (Campsus). A expressão Bar Kamtsa – filho de Kamtsa – demonstra uma importância menor do que Kamtsa. Assim, numa curta frase – “Devido à diferença entre Kamtsa e o filho de Kamtsa ruiu o Templo” – nossos sábios demonstram como a luta pelo poder e soberania, as picuinhas sobre a diferença de importância entre um “Kamtsa” e um “filho de Kamtsa”, é o que levou à destruição do Templo.
Agora podemos entender a crítica de Rabí Yochanan sobre Rabí Zecharyá ben Avculas. Rabí Yochanan revelou que a luta pela soberania dentro do Povo de Israel levou Rabí Zecharya a enganar-se na avaliação do poder das pessoas envolvidas. Diferentemente da humildade verdadeira, na qual a pessoa reconhece que seu nível é um presente de D’us, ele foi vítima de uma humildade errônea e negativa, falhando ao avaliar seu próprio nível. Por isso, Rabí Zecharya não admoestou o dono da festa, pois achava que seu nível não permitia uma superioridade em relação ao anfitrião. Pelo mesmo motivo, Rabí Zecharya foi tolerante em relação a Bar Kamtsa e não o matou, por achar que ele não tinha o nível e o direito de derramar o sangue de outrem.
Mais ainda: o medo de Rabí Zecharya que o povo interpretasse mal as leis referentes aos sacrifícios também é resultado desta confusão de níveis. Ele não avaliou corretamente o nível do povo e achou que não seria capaz de diferenciar entre as leis normais e um caso específico. Quando uma pessoa não reconhece o próprio valor, muito provavelmente não reconhecerá o valor dos outros.
É por isso que Rabí Yochanan expressou-se de forma tão dura, como se a humildade de Rabí Zecharyá tivesse levado à destruição do Templo e ao exílio. Mesmo que se tratava de um decreto Divino pelos pecados do povo, este defeito do povo ganhou uma expressão mínima e delicada mesmo no líder de Israel, Rabí Zecharyá, de abençoada memória. Por isso a cobrança foi maior e ele foi considerado sócio no pecado de Israel. Obviamente que seu erro foi mínimo e, se isso não fosse dito por Rabí Yochanan, não poderia sequer passar por nossas cabeças.
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O perfil da geração que antecederá Mashiach
Vimos que o último exílio ocorreu devido à luta pela superioridade dentro do povo, o que acaba acarretando uma confusão entre as classes. À luz de tudo o que foi explicado até aqui, é possível explicar que, na época mais próxima à vinda de Mashiach, esta situação atingirá o auge. Nossos sábios dizem que Mashiach virá numa geração que é totalmente merecedora ou numa geração que é totalmente culpada. Ou seja: se a geração não conseguir reparar os pecados de forma a chegar ao estado em que mereça a redenção, a salvação chegará da forma contrária: as pessoas acabarão afundando totalmente nos pecados até reconhecerem que precisam consertar tudo. Então, suplicarão a D’us, pedindo ajuda, assim como uma semente só floresce depois de apodrecer totalmente.
Desta forma, poderemos compreender muito bem a descrição de nossos sábios sobre a geração que antecederá Mashiach (Sotá 49b). Todo o trecho descreve uma luta pela superioridade, uma guerra contra a divisão tradicional de classes. Citaremos a guemará trecho a trecho (em letras itálicas) com a explicação respectiva a cada trecho:
“Na geração próxima ao Mashiach [vão acontecer as seguintes coisas]”:
“A ousadia crescerá” – ousadia significa alguém que não reconhece seu lugar e status e, por isso, fala de forma desrespeitosa com alguém maior que ele.
“O respeito[18] subirá” – Rashí[19] explica que esta frase quer dizer o seguinte: “O respeito será deturpado, ou seja: não honrarão um ao outro”. Aqui vemos uma guerra literal pela soberania.
“A videira dará seus frutos, mas o vinho custará caro” – o vinho é só um exemplo de tudo pelo que as pessoas pagam fortunas só pela “marca” e pelo “prestígio”, mesmo que a mercadoria propriamente dita não valha aquele preço. Isso com certeza é devido a uma luta secreta entre as pessoas pela honra.
“O reinado será transformado em heresia” – ou seja, os líderes do Povo de Israel não serão mais os rabinos, como tinha sido durante toda a História do nosso povo no passado, mas justamente as pessoas mais baixas (espiritualmente falando, ou seja pessoas que infelizmente não cumprem as mitsvot). Isso é uma das maiores expressões da confusão entre as classes, quando os elevados estão por “baixo” e assim também o oposto.
“Ninguém repreende” – Assim como vimos em relação a Rabí Zecharya: se as classes não estão claras, os sábios não têm como governar o povo, de forma que mesmo quando vêem coisas erradas tem que “fechar os olhos”.
“As reuniões vão ser para imoralidade” – Não é necessário explicar. De qualquer forma o ponto é que hoje (diferente do que era a algumas gerações) faz parte do “prestígio” social o extremo oposto ao status verdadeiro perante D’us, ou seja novamente vemos a idéia que está “por cima” quem na verdade é baixo.
“O Galil será destruído (etc…)” – esta parte fala sobre acontecimentos e não sobre comportamentos, portanto não tem ligação ao nosso assunto e não serão abordados aqui.
“A sabedoria dos escribas (os Sábios) estragar-se-á” – aos olhos do povo, uma expressão da confusão de classes.
“Os tementes do pecado serão desprezados (pelo povo)” – isso também é uma expressão da confusão de classes.
“A verdade estará ausente” – como os sábios e estudiosos de Torá não são devidamente apreciados pelo povo, a verdade fica ausente.
“Os jovens humilharão os velhos, os velhos terão que se levantar perante os pequenos, o filho desprezará o pai, a filha se rebelará contra a mãe, a nora contra a sogra” – tudo isso devido à confusão de classes.
“Os inimigos de uma pessoa serão os membros de sua própria família” – a luta pela soberania entrará até mesmo nos lares, entre cônjuges e familiares.
“A face da geração como a face do cão” – as pessoas estão dando valor aos cães como se fossem seus próprios filhos. Isso é um verdadeiro desabamento de todas as classes: já não há diferença entre a geração de seres humanos e os cães.
“O filho não terá vergonha do seu pai” – isto pois o filho se sente no mesmo patamar que seu pai.
“E sobre quem é preciso se apoiar? Sobre nosso Pai Celestial” – uma vez que desmoronaram todas as classes a tal ponto que já não é possível administrar uma sociedade, chega-se à conclusão de que é preciso da ajuda dos Céus para consertar tudo isso e esperar pela vinda do Mashiach. Que seja em nossos dias, Amen VeAmen!
1
[1] Na Guemará consta um bezerro “terceiro”, Rashí no tratado de Meguilá 7a explica que isto significa o terceiro bezerro a nascer de uma vaca, que é o bezerro mais saldável e portanto mais caprichado para uma oferenda à D’us.
[2] A guemará conta qual foi a história:
“Eles tinham um costume que quando saíam um noivo e uma noiva, levavam perante eles um galo e uma galinha, como que dizendo: Que possam ter muita descendência como galinhas.
“Certo dia, estava passando uma legião de romanos, e pegaram [as galinhas]. Então [os judeus] caíram em cima deles [=expressão usada pela guemará e não gíria brasileira] e bateram neles. [Os romanos] foram contar para o César: Os judeus rebelaram-se contra você. [Neste ponto continua a Guemará contando o desenvolvimento dos fatos até a destruição de Tur Malka – mas este trecho não é necessário citarmos aqui].
[3] Eichá Rabá 4.
[4] Pág. 9b.
[5] Até me deparar com as palavras de Flávio Josefo, encontrava dificuldade em entender as palavras do midrash Echá Rabá (conforme aparece na edição com o Ets Yossef – “Buber”). Lá, o midrash explica que ambos os homens se chamavam Kamtsa, e mesmo assim, o midrash traz lá a linguagem da Beraitá: “Kamtsa e Bar Kamtsa” – e a pergunta é clara: como pode ser que ele se chamava tanto Kamtsa como Bar Kamtsa? À luz do que consta acima, não fica mais difícil: seu nome era Kamtsa Bar Kamtsa (ou seja Kamtsa o filho de Kamtsa). Agora é mais compreensível ainda por que o servente se confundiu e convidou Bar Kamtsa em vez de Kamtsa.
[6] Tratado de Guitín pág. 57a.
[7] Assim vi em seu nome, mas sua resposta não foi trazida.
[8] Vaikrá 19:17.
[9] Vaikrá 19:18.
[10] Bereshit 27:40.
[11] Yalkut Shimoni, Toledot 115 e Bereshit Rabá 67.
[12] Bereshit 27:29.
[13] E vide também no Targum Unkelos.
[14] Introdução a Echá Rabá.
[15] Bereshit 32:29.
[16] Assim se responde à pergunta do Saba de Kelem zt”l: é verdade que o ódio gratuito não é um pecado grave como idolatria, relações proibidas e assassinato, mas a “realidade” do ódio gratuito subjuga os filhos de Israel a Essav. Assim, a punição pelo ódio gratuito é equivalente à punição pelos três pecados mais graves.
[17] Mesmo que, de fato, não tenha sido este o motivo do exílio, pois os cohanim sim estavam prontos para oferecer o sacrifício, (só que havia um impedimento haláchico), D’us quem fez as coisas acontecerem de tal modo que a guerra de Edom decorreu através do fato terem que recusar fazer a oferenda – fato este vem aludir a nós que o Povo de Israel não tinha mais o direito de soberania.
[18] A tradução aqui é segundo o Rashí que citaremos em seguida.
[19] Em Sanhedrin 97a.