Yom Kipur

 

 

 

 

Capítulo 6

A Raiz de Yom Kipur

 

 

“Quando os malévolos se aproximam para comer minha carne, como meus opressores e inimigos, tropeçam e caem. Mesmo que um exército acampe para me atacar, meu coração não temerá…”

(Salmo 27:2-3)

 

Nossos Sábios, no Midrash Tehilim (Salmo 27), revelam que os dois versículos acima citados abordam o assunto das acusações (por parte dos anjos) no julgamento Celestial que ocorre no dia de Yom Kipur (para aqueles que ainda não tiveram seu veredito resolvido em Rosh Hashaná). O Midrash em questão explica trechos dos versículos, dizendo o seguinte:

‘Quando os malévolos se aproximam’ – estes são os ministros (anjos) encarregados pelos povos; ‘para comer minha carne’– eles vêm acusar Israel no dia da justiça. ‘Meus opressores e inimigos’ – o valor numérico de Satan é 364: exatamente o número de dias do ano menos um. Durante todos os dias do ano, o Satan tem permissão de falar mal de Israel, exceto em Yom Kipur. Diz-lhe D’us: ‘Você não tem a permissão de tocar neles (ou seja: denunciá-los). Mesmo assim, vá ver o que eles estão fazendo. Quando o Satan vai e vê todos ocupados em jejum e oração, vestidos de branco igual aos anjos, ele retorna totalmente envergonhado. D’us lhe diz: ‘O que você encontrou em meus filhos?’ Diz o Satan: ‘Eles são como os anjos e não posso tocar neles (ou seja: não posso denunciá-los)’. D’us imediatamente o aceita e anuncia: ‘Perdoei a vocês’. A partir de agora, Israel diz: ‘Mesmo que um exército acampe para me atacar, meu coração não temerá’”.

Este trecho de nossos sábios parece um pouco incompreensível por alguns motivos:

1) Neste midrash, assim como em outros, é lembrado que o valor numérico de Satan é 364 e, por isso, há um dia por ano – Yom Kipur – no qual ele não pode nos denunciar. Esta declaração é estranha, uma vez que 365 são os dias do ano solar, enquanto Yom Kipur é fixado de acordo com o calendário hebraico que é lunar, de 354 dias.

2) Da resposta do Satan (‘Eles são como os anjos e não posso tocar neles’) parece que se não fosse pelo fato deles serem como anjos, ele tocaria neles ou seja os denunciaria. Porém, se o Satan não tem permissão de denunciar neste dia (como descrito no Midrash), por que ele o faria mesmo assim? Afinal, ele só recebeu permissão de averiguar o que eles estão fazendo. E por outro lado devemos questionar também: uma vez que o Satan admitiu que não pode tocá-los porque parecem anjos, para que é necessário D’us lhe dizer “você não tem permissão de tocá-los”? Mesmo que ele tivesse permissão, não conseguiria.

3) Quanto ao próprio conteúdo: como é que D’us determinou que o Satan não tem permissão de denunciar um dia por ano? Afinal, D’us não abre mão dos pecados[1] e isso parece contradizer todas as regras de justiça que o Próprio D’us determinou. Por outro lado, se realmente a proibição de denunciar não é uma contradição à justiça Celestial, por que D’us instituiu essa isenção maravilhosa somente em Yom Kipur?

4) O Satan objetou que, como viu os judeus vestidos de branco, à semelhança de anjos, não podia denunciá-los (“não posso tocá-los”). A questão é a seguinte: digamos que há o que denunciar – como pecados cometidos durante o ano dos quais não fizeram teshuvá – embora agora estejam de branco. Neste caso, por que o fato de parecerem anjos faz com que ele não possa tocá-los? Se, por outro lado, não há o que denunciar – pois eles fizeram teshuvá e são de fato como os anjos – para que o Satan diz que não lhes pode tocar? Não há pelo que tocar neles! Parece, analisando sua expressão “não posso”, que há pelo que denunciá-los, mas ele “não pode” porque eles parecem anjos – afirmação esta que não faz sentido.

5) O midrash explica que, quando o Satan chega à conclusão que não pode denunciá-los, D’us anuncia a Israel: “Perdoei”. Se eles realmente não fizeram teshuvá, por que o fato de o Satan não poder denunciá-los é motivo para perdoar? E se fizeram teshuvá, o que seu perdão tem a ver com o Satan e sua capacidade ou falta de capacidade de denunciar?

Além destas perguntas, há mais um ponto para prestar atenção no midrash: no início, ele fala sobre a acusação dos anjos responsáveis pelos povos e depois passa a falar sobre a acusação do Satan, deixando de lado a acusação dos anjos dos povos. Somente no final do midrash há uma alusão ao fato de que não é preciso temê-los, no versículo do Salmo com o qual ele termina.

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A Purificação de Yom Kipur

Para explicar este midrash, é preciso primeiramente levantarmos algumas perguntas sobre o Yom Kipur:

1) Como citado em capítulos anteriores: De acordo com a maioria dos sábios no Talmud (que discutem com Rabí Yehudá Hanassí) e conforme ficou determinado no lei, o “próprio dia” de Yom Kipur expia os pecados junto com a teshuvá. Se a teshuvá sozinha não tem poder de expiar pelo pecado, como o próprio fato de ter chegado o dia de Yom Kipur pode resolver? [Esta questão foi abordada também nos capítulos anteriores, mas neste capitulo vamos apresentar, com a ajuda de D’us, outra forma de responde-la[2]].

2) A Mishná[3] diz: “Disse Rabí Akiva: bem-aventurados são vocês… quem os purifica? Seu Pai Celestial”. Rabí Akiva traz como prova o versículo “Lançarei sobre vocês águas puras e vocês purificar-se-ão”. A Mishná está falando de Yom Kipur, enquanto o versículo trazido é de Yechezkel 36, num trecho em que o profeta está falando sobre a purificação na época da redenção e não sobre a purificação de Yom Kipur.

Da mesma forma, é preciso questionar ainda sobre o Midrash Shemot Rabá[4]: “Assim, Israel se afunda nos pecados devido à má inclinação que tem dentro de seu corpo. Eles fazem teshuvá e D’us todo ano perdoa seus pecados e renova seu coração para temê-Lo, conforme dito: ‘Lhes darei um novo coração’” Este versículo também é do mesmo capítulo de Yechezkel que, conforme vimos, fala sobre o futuro e não sobre Yom Kipur.

3) Seria interessante analisar também o sorteio que se fazia no Templo, em Yom Kipur, entre dois cabritos, para determinar qual seria oferecido a D’us no Altar e qual seria mandado para o Azazel e jogado do alto de um penhasco. Qual a necessidade do sorteio, que era parte inseparável do serviço e era feito pelo próprio Cohen Gadol, lendo o Nome Sagrado de D’us? Afinal, era possível separar um bode para D’us e um para o Azazel assim como se faz com todas as demais oferendas: por exemplo, todo dia (no Tempo) separava-se um carneiro para o sacrifício do Tamid matutino e um carneiro para o sacrifício do Tamid Vespertino, sem sorteio.

4) Está escrito nos Salmos (57:3): “Clamo a D’us, o Altíssimo, que completa Sua bondade sobre mim”. Sobre este versículo, explica o midrash Bereshit Rabá[5]:

‘Clamo a D’us, o Altíssimo’ – em Rosh Hashaná. ‘Que completa Sua bondade sobre mim’ – em Yom Kipur, para saber qual é para D’us e qual é para o deserto”.

À primeira vista, parece impossível compreender este midrash: por que o sorteio dos cabritos é a “completitude da bondade de D’us”, se é somente o início da oferenda? Qual é a grandeza deste sorteio para o midrash louvá-lo tanto?

Tentaremos responder a todas estas questões, com a ajuda de D’us:

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O Primeiro Yom Kipur da História

Para entender melhor o assunto de Yom Kipur, precisamos retornar às suas raízes, conforme explica o midrash Tanchuma[6]:

“Disse Rabí Yehuda bar Shalom: cento e vinte dias permaneceu Moshê com D’us. Como? … no dia 6 do mês [de Sivan] D’us lhes deu os Dez Mandamentos, e está escrito lá: ‘Moshê subiu a D’us’ e lá permaneceu por 40 dias: 24 dias de Sivan mais 16 dias de Tamuz totalizam 40. Moshê desceu no dia 17 de Tamuz, viu o bezerro de ouro, quebrou as tábuas da Lei e cuidou dos pecadores nos dias 18 e 19. Voltou a subir no dia 20 [para pedir perdão e orar a D’us], permaneceu 10 dias de Tamuz e todo o mês de Av, totalizando 40 dias. Subiu [pela terceira vez] no primeiro dia de Elul (quando D’us lhe disse ‘Corte para si duas tábuas de pedra iguais às primeiras’) e ficou lá até o décimo dia de Tishrê, Yom Kipur. Encontrou o povo ocupado com orações e jejum e neste mesmo dia foi dito a ele: ‘Perdoei conforme suas palavras’. D’us o fixou como dia de perdão para todas as gerações, conforme dito: ‘Pois neste dia expiará por vocês para purificá-los de todos os seus pecados’”.

O midrash deixa claro que o dia em que o pecado do bezerro de ouro foi perdoado e o Povo de Israel recebeu as segundas Tábuas da Lei é o dia que foi fixado para todas as gerações como Yom Kipur – o dia da expiação. Portanto, se analisarmos o que significa alcançar o nível de receber as segundas tábuas, poderemos também entender a essência de Yom Kipur.

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Yom Kipur e o Mundo Vindouro

A Guemará[7] traz que, no dia em que Israel postou-se frente ao Monte Sinai e Moshê Rabênu subiu para receber as primeiras tábuas, “cessou a sujeira (impureza) da cobra”. O Ramchal explica[8] o significado desta expressão: ao receber a Torá, o povo chegou ao nível do Primeiro Homem antes de pecar comendo o fruto da árvore do conhecimento. Ou seja: chegaram ao nível de Mashiach e do Mundo Vindouro. Ao pecarem com o bezerro de ouro, desceram de nível. A partir disto podemos concluir que o recebimento das segundas tábuas é um nível “parecido” ao do Mundo Vindouro, mas não no mesmo nível das primeiras tábuas. Afinal, as primeiras tábuas eram mais elevadas por terem sido esculpidas por D’us.

Aprendemos, portanto, que a força de Yom Kipur – alcançar as segundas tábuas – é a possibilidade de chegar a um nível similar ao do Mundo Vindouro. Por isso, em Yom Kipur, não há comida nem bebida e o Povo de Israel se parece com anjos[9], pois este é o nível do mundo vindouro do sétimo milênio[10].

Realmente, o Shelá Hakadosh[11] escreve: “Yom Kipur… é o segredo do Mundo Vindouro, no qual não há comida nem bebida”. Também o Rabí Tsadok Hacohen de Lublin escreve[12] que Yom Kipur é “uma parte do Mundo Vindouro”, mais do que todos os Shabatot do ano, conforme de fato o versículo[13] denomina ao Yom Kipur: Shabat Shabaton (o Shabat dos Shabatot).

Isso consta abertamente no sagrado Zôhar[14]: “Em Yom Kipur, aquela pedra preciosa brilha com um brilho superior que vem do brilho do Mundo Vindouro, e o delator fica confuso”. Ou seja, em Yom Kipur brilha a luz do Mundo Vindouro. (Mais para frente explicaremos o final do Zôhar: “o delator fica confuso”.)

Encontramos, em vários midrashim, comparações entre Yom Kipur e o Mundo Vindouro. Por exemplo o Midrash que citamos no capitulo 4 onde se diz o seguinte: “‘Sou negra e bela’…  Sou negra todos os dias do ano e bela em Yom Kipur… Sou negra neste mundo e bela no mundo vindouro”[15]. E também sobre o versículo do Cântico dos Cânticos “Meu amado é alvo e vermelho…” diz o Midrash[16]: “Vermelho durante todos os dias do ano e alvo em Yom Kipur. Vermelho neste mundo e alvo no Mundo Vindouro”.

Agora entendemos também o midrash[17]: O Yom Kipur nunca será anulado, pois está escrito: ‘Este será para vocês um estatuto eterno’”. Uma vez que Yom Kipur tem o nível do Mundo Vindouro, não será anulado mesmo então.

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O pedido ousado de Moshê

Por isso, é muito compreensível que Moshê Rabênu, logo depois de conseguir que Yom Kipur fosse fixado como perdão para as futuras gerações, pedisse justamente neste dia: “Mostra-me, por favor, Tua Glória”[18], ou seja: mostre o nível máximo de captação da Divindade, que pertence ao Mundo Vindouro, onde os justos aproveitam do brilho da Shechiná[19]. D’us lhe responde: “Você não poderá ver Minha face, pois um ser humano não pode Me ver e permanecer vivo”, ou seja: este é um nível que pertence somente ao Mundo Vindouro e não a Yom Kipur, que é somente próximo ao aspecto do Mundo Vindouro mas não exatamente no nível dele. Conforme nossos sábios explicam no Sifrá[20]: “Rabi Dossa diz: D’us disse: ‘Um ser humano não pode Me ver e continuar vivo’. Em vida eles não vêem, mas vêem após a morte” – ou seja no Mundo Vindouro [Escarificação importante: Segundo os cabalistas, o mundo onde se encontra a alma após a morte até a ressuscitação, bem como o mundo pós-éra-messiânica, ambos são chamados por nossos Sábios de Mundo Vindouro, pois para os falecidos o Mundo Vindouro já começa daquele ponto em diante[21]].

Na verdade, é possível entender isso num nível mais profundo. “Olam Habá” – o Mundo Vindouro – é na verdade o alcance do propósito final da criação. Por isso, mesmo as segundas tábuas (para não dizer as primeiras) têm um pouquinho da dimensão do Olam Habá, uma vez que o recebimento da Torá é com certeza uma “linha de chegada” em relação a todas as gerações que a precederam, desde a criação do mundo. Por isso, quando Moshê Rabênu recebeu as segundas tábuas, ele tentou ampliar e completar o passo que obteve, pedindo “Mostra-me Tua Glória”, que é chegar ao máximo – ao propósito final da elevação espiritual. A isso D’us respondeu o que vimos acima: este ainda não é o propósito absoluto.

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As Respostas

Agora podemos entender qual é a força do “próprio dia” de Yom Kipur. Quem faz teshuvá não consegue expiar o fato de ter transgredido mitsvot lô taassê (preceitos negativos), pois, no final das contas, ainda está sujo pela impureza do pecado. Contudo, como em Yom Kipur brilha a luz do Mundo Vindouro, que é um mundo no qual não existe “mal” e “impureza”, a força deste dia anula a impureza da pessoa e ela perde o embrutecimento do coração – contanto que tenha feito teshuvá, pois caso contrario ele próprio ainda está ligado com o mal. Por isso, essa pureza é descrita por nossos sábios com os versículos de Yechezkel sobre o futuro: “Despejarei sobre vocês águas puras e vocês ficarão puros”, “Darei a vocês um novo coração”[22].

Por este mesmo motivo, o Satan não tem permissão para acusar: este dia – graças às orações da geração do deserto – passou a ter um aspecto do Mundo Vindouro, onde o mal não tem poder algum. Isso não é à toa, pois, como vimos, o Mundo Vindouro é a chegada ao propósito, enquanto o mal é somente um meio. Portanto, o mal não tem lugar no propósito.

É por isso que consta nos midrashim que o valor numérico de “Satan” é 365 menos um, conforme os dias do ano solar: o ano solar é o ano do ponto de vista da natureza[23]: trata-se de um período fixo e dele dependem as estações do ano e todo o ciclo vegetal e animal. Já o ano lunar é o ano do ponto de vista espiritual: não se trata de uma realidade natural, mas algo que o Tribunal Rabínico decide santificando cada início de mês. É deste ano que dependem todas as festas judaicas, que são períodos espirituais. Mesmo assim, elas recebem alguma influência do ano solar, como se percebe do fato de que a Torá liga o nome das festas ao período da estação (“na época no mês da primavera…”[24] “na festa da colheita…”[25] e assim por diante). Já Yom Kipur, que tem a dimensão do Mundo Vindouro, não está sob poder do ano solar. Desta forma, o poder do Satan tem 365 dias menos um, ou seja: embora tecnicamente o Yom Kipur se encontra na dimensão do tempo e é possível encontrá-lo ao contar os dias do ano solar, do ponto de vista espiritual ele não é influenciado pela força do ano solar; ele está acima do ano solar. Este é o motivo por que o Satan – que é o yetser hará[26], cujo poder só se encontra no mundo material[27] – não tem como agir neste dia.

Esta é a explicação do midrash Tehilim que trouxemos no início do capítulo: o Satan “não pode” acusar ao ver que o Povo de Israel se parece com os anjos, porque isso ocorre devido à dimensão do Mundo Vindouro que brilha dentro de nós no dia do Kipur. O que o midrash diz que o Satan não tem “permissão” de acusar e “não consegue” acusar é o mesmo: não significa que D’us “Se intromete” nas regras de justiça Celestial e proíbe o Satan de falar mal, mas a própria essência do dia, um dia no qual o Povo de Israel pertence ao Mundo Vindouro, é um dia no qual o Satan não tem influência, o que em hebraico se chama que “não tem achizá” (literalmente: apego, alcance). Por isso, quando o midrash queria expressar a “acusação”, ele usa a linguagem “tocar neles”, pois a acusação é um dos resultados práticos de ter achizá.

Sobre a expressão “não posso tocar neles”, fizemos a seguinte pergunta: se o povo fez teshuvá, não há porque tocar, e se não fizeram teshuvá, de que adianta parecerem anjos? De acordo com a explicação até aqui, fica bem claro: mesmo quando o Povo de Israel retorna a D’us com todo o seu coração, ainda permanece com a impureza do pecado (pois, caso transgrediu uma mitsvat lô taassê – preceito negativo – seu pecado só é expiado por intermédio de Yom Kipur). Desta maneira, a princípio, o Satan ainda tem sobre o que tocar neles, mas esta é justamente a força de Yom Kipur, que os transforma em anjos, ou seja seres na dimensão do Mundo Vindouro e, conseqüentemente, o Satan “não consegue tocá-los”. Por este mesmo motivo o midrash termina: “D’us imediatamente o aceita e anuncia: ‘Perdoei vocês’”. O próprio fato de que a força do mal não ter achizá (não ter alcanceconforme o Satan acaba de admitir) é o mesmo motivo pelo qual eles se purificam da impureza dos pecados, pois a impureza dos pecados é a própria força do mal em sí, como explicamos no capítulo 2.

Agora, depois destas explicações, já podemos tentar entender o desenvolvimento das idéias no midrash (citado). Pois, aparentemente, o desenvolvimento é estranho: Inicialmente, o midrash apresenta a acusação dos anjos das nações contra o povo de Israel, depois passa para o caso do Satan (explicando devidamente que o Satan não tem permissão e nem consegue acusar-nos em Yom Kipur), e assim encerra o assunto, sem explicar nada sobre como o povo de Israel se salva da acusação dos anjos das nações, somente com a menção do versículo que dá a entender que nos salvamos também deles. Afinal, os anjos das nações sim acusaram (diferente do Satan), e onde está a defensa à acusação deles? A explicação é a seguinte: Segundo os cabalistas, depois da vinda do Mashiach, haverá duas fases: “os Dias do Mashiach”, sobre os quais está escrito[28] que a única diferença entre eles e este mundo é no quesito da subjugação aos reinados do mundo. Depois disso os corpos se santificarão mais e virá a fase do Olam Habá, o mundo vindouro, onde não existe comida nem bebida e que se encontra acima do plano físico da forma como o conhecemos hoje. Aprendemos então, que existem três níveis de elevação espiritual pelo qual passarão nosso povo: O nível atual onde subjugação aos reinados e existe materialidade, a segunda etapa onde não subjugação mas existe materialidade, e a terceira etapa onde nem mais materialidade. Por isso, o midrash primeiramente apresenta a acusação das nações do mundo, cuja achizá neste mundo é expressa pelo fato de subjugarem o Povo de Israel. Depois, o midrash apresenta um nível maior, que é o Satan, cuja achizá engloba todo a existência material[29] (como explicado). Quando o midrash explica que no dia do Yom Kipur nos encontramos no terceiro nível, o nível que é comparável ao Mundo Vindouro, quando nem mesmo comemos e bebemos (como anjos) e nem mesmo o Satan tem achizá – não há mais necessidade de mencionar os anjos das nações do mundo, pois a achizá deles é somente sobre duas etapas antes disto, sendo que o fato de acusarem não tem a menor relevância. Somente no final do midrash é mencionado o versículo onde percebe-se que não há o que temer da acusação das nações do mundo, sem necessidade de explicações.

*

O sorteio dos cabritos

Cada festa judaica tem uma força espiritual especial (cada festa com sua força exclusiva). Quanto mais nos prepararmos e nos ocuparmos com as mitsvot do dia, mais nos ligamos à força da festa. O mesmo se dá em Yom Kipur: quanto mais trabalharmos para pertencer à dimensão do Olam Habá e da anulação do mal, mais ficaremos longe do alcance do mal. Este é o serviço dos dois cabritos, conforme explicaremos:

É facilmente compreensível que o cabrito para D’us é paralelo à força do bem, enquanto o cabrito do Azazel (que é o nome do Satan[30]) é paralelo à força do mal. Quando trazemos os dois cabritos, exatamente idênticos em sua aparência, ainda não está claro qual deles é paralelo a que força. O sorteio é que esclarece quem pertence ao quê. Este esclarecimento é a principal reparação do Mundo Vindouro, pois a separação entre o bem e o mal é a reparação do pecado do Primeiro Homem, como explicam os cabalistas[31] que o pecado foi misturar o bem e o mal comendo do fruto da Árvore do Conhecimento. Por isso, o sorteio é parte integrante do serviço de Yom Kipur (ao ponto de ter se o cuidado de ser feito pelo próprio Cohen Gadol e etc), pois como citado neste dia temos que tentar o quanto mais nos alcançar o aspecto do Mundo Vindouro, sendo justamente esta a função do sorteio.

Citamos acima o Midrash de Bereshit Rabá[32] que explica sobre o versículo nos Salmos: ‘Que completa Sua bondade sobre mim’ – que isto se refere ao sorteio no Yom Kipur. Questionamos por que o sorteio dos cabritos é a “completitude da bondade de D’us”, se é somente o início da oferenda? E que grande bondade há aqui? Segundo tudo o que explicamos aqui, realmente o sorteio representa a “completitude” pois, graças a “bondade de D’us”, este sorteio tem a força espiritual de representar o término da reparação deste mundo, pelo menos no nível que se pode alcançar em Yom Kipur – que é parecido com o Mundo Vindouro mas ainda não é o próprio – para possibilitar a realidade do Mundo Vindouro.

Logo depois de terem feito o sorteio e chegado à reparação, já é possível enviar o cabrito ao deserto e jogá-lo da montanha, de forma que ele se desintegre totalmente até chegar à metade da montanha. Esta é a anulação do mal (que é possível justamente depois do sorteio que representa o alcance do aspecto do Mundo Vindouro, na qual o mal não tem achizá) e, desta forma, o Povo de Israel se purifica da impureza de seus pecados.

 

1


[1]  Babá Batrá 50a.

[2]  Pois como explicado na introdução desta obra (citando o Tratado de Sanhedrin 34a), uma das belezas da nossa sagrada Torá é o fato de que para cada pergunta há inúmeras respostas, sendo todas verdade.

[3] Yomá 85b

[4] parashá 15.

[5] 98:1.

[6] Ki Tissá 31

[7] Shabat 146a

[8] Em seu livro Derech Emuna e outros.

[9] Devarim Raba 2:35

[10] Pois sobre o que foi dito em Berachot 34b – “Pois disse Shemuel: a única diferença entre este mundo e os dias de Mashiach é a subjugação [ou não] aos reinados” – os cabalistas explicam que isto se refere aos dias de Mashiach que vão até o sétimo milênio. Já no sétimo milênio, de acordo com o Zôhar, D’us renovará o mundo, de forma a ter uma vida mais espiritual.

[11] Massêchet Yomá, Or Torá, ot vav, que traz do livro Toláat Yaacov.  

[12] Machashevet Charuts 148

[13] Vaikra 16:31.

[14]  Vol II, 184b

[15] Yalkut Shimoni, Shir Hashirim 982

[16] Yalkut Shimoni, Shir Hashirim 992

[17] Yalkut Shimoni, Mishlê 944

[18] Shemot 33:18, veja o comentário de Rashí.

[19] Como está escrito no Tratado de Berachot 17a, que esta é a essência da recompensa no Mundo Vindouro.

[20]  Dibura Dindavá 1:2

[21]  Sem entrarmos agora na discussão entre o Rambam e o Ramban.

[22] Baseando-se nisso é possível explicar que, quando Moshê Rabênu pediu “Mostra-me Tua glória”, ele queria aumentar a força de Yom Kipur de forma a transformá-lo totalmente no mundo vindouro, para que a expiação do povo pelo pecado do bezerro fosse num nível mais alto (afinal, quanto maior for a dimensão do Olam Habá, mais se esvairá a impureza do pecado). Esta é a explicação do que nossos sábios dizem no Pirkê Derabi Eliêzer (Mahadurat Chorev) cap. 45: “Disse Moshê: em Yom Kipur verei a honra de D’us e desta forma expiarei os pecados de Israel, e disse perante D’us: ‘Mestre do Universo, mostra-me Tua Glória’. D’us respondeu-lhe: ‘Você não pode ver Minha Glória para que não morra, como foi dito: ‘Pois um homem não pode Me ver e continuar a viver’”.

[23] Veja no midrash Bereshit Rabati, Bereshit, pág. 6: “Mesmo assim, é na contagem dos dias do ano solar e baseado nele que o mundo funciona”. E diz ainda o midrash Bereshit Rabá 6:3, que Essav é ligado a este mundo e por isto segue o calendário solar, enquanto que Yaakov é ligado ao Mundo Vindouro e por isto segue o calendário lunar.

[24]  Shemot 23:15.

[25]  Ibd, versículo 16.

[26]  Tratado de Sucá 52a, onde conta que no Mundo Vindouro o yetser hará será abatido por D’us.

[27]  Conforme Babá Kamá 16b.

[28] Tratado de Berachot 34b.

[29] Sendo que, a nível de comparação, a matéria existirá mesmo quando estivermos no nível dos “Dias do Mashiach”, e desparecerá somente na etapa mais avançada, que é o Mundo Vindouro.

[30] Ramban Vaikrá 16:8.

[31] Vide, por exemplo, Or Hachaím Hakadosh em Devarim 32:8.

[32] 98:1.

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